#SérieBatuques: Meu baticumbum é diferente: não, não existe mais quente!

 

Texto: Eryck Quirino e João Vitor Silveira
Revisão: Luise Campos 
Investigar ritmos é perceber as ligações de um universo quase à parte, no qual as conversas se dão por sinais e pela batuta aguda dos apitos, os quais se manifestam a todo momento ditando o andamento do som. Assim, os símbolos visuais e auditivos das direções de bateria chamam a atenção dos ritmistas e se misturam na complexa melodia da orquestra que conduz a escola em sua caminhada. É dela a missão de ser a primeira ala a começar o desfile e a última a encontrar a linha final.
Para trilhar a nossa última viagem da série Batuques, iremos aproveitar a nossa última parada, que foi em Madureira, embarcar na estação de trem mais próxima, rumando para a Zona Oeste do Rio de Janeiro. Uma viagem curta, na companhia dos infalíveis representantes do comércio alternativo que tomam esse meio de transporte na cidade, nos fará chegar até Padre Miguel.
Se voltarmos no tempo, encontraremos os bambas que fundaram a Mocidade Independente de Padre Miguel se congregando por intermédio do esporte da bola redonda que tanto cativa nosso país. Assim como a União da Ilha do Governador, a Mocidade também se originou por intermédio de um time de futebol local. É em meio aos batuques, que comandavam os festejos após as partidas vitoriosas do Independente Futebol Clube, sempre regadas à batida de limão, que a escola é fundada e coloca de vez a Zona Oeste no mapa do Carnaval. 
Fundada em 10 de novembro de 1955, a Mocidade Independente protagonizou diversos momentos importantíssimos para a história da festa como a conhecemos, em todos os seus aspectos. Mas, possivelmente, o mais determinante deles foi a influência que a bateria de Padre Miguel teve para a transformação das demais baterias das escolas de samba em todo o país. E, como não poderia ser diferente, são esses códigos e histórias que iremos abordar mais a fundo nesse texto, para falar da Não Existe Mais Quente.
Padre Miguel é a capital da escola de samba que bate melhor no Carnaval

Mestre André na batuta da Bateria Independente no desfile campeão de 1979. Foto: O Globo
E se o Mestre André sempre dizia, não seríamos nós a discordar dele: ninguém segura essa bateria. Realmente, é impossível falar dela sem primeiro trazer à baila essa grande figura do Carnaval carioca, tido por muitos como o “Mestre dos Mestres” – o icônico Mestre André que, na verdade, se chamava José.
José Pereira da Silva foi técnico do Independente Futebol Clube, time a partir do qual foi fundada a Mocidade, e encantou a escola desde antes de assumir o cargo pelo qual entraria para a História. Ainda no bloco Mocidade do Independente, surgido antes da escola de samba, Mestre André foi baliza para o estandarte, mas tão logo a escola foi fundada ele se tornou mestre de bateria, em 1956. 
E após se investir da função, Mestre André conduziu a bateria da Mocidade Independente para um patamar sem precedentes. Durante muito tempo da sua gestão à frente da Não Existe Mais Quente, ela era conhecida como uma bateria que tinha uma escola de samba, e não ao contrário, tamanha a marca e identidade que foram empregadas pelo mestre e seus diretores e ritmistas no Carnaval. Dessa forma, aqueles que testemunharam seu trabalho reconhecem a singularidade que foi. Zé Bolinho, que foi ritmista sob a batuta de André, diz: “Assim como os grandes craques do futebol, que deixam sua marca única, nunca mais vai existir outro Mestre André.”
Uma das criações que ocorreram sob a sua batuta na Mocidade, tomando todo o mundo do Carnaval de assalto, foi a utilização do surdo de terceira. Junto com Tião Miquimba, Mestre André implementou esse instrumento em sua bateria, criando um balanço inconfundível na bateria independente, além de ser uma ótima ferramenta para ajudar na manutenção do ritmo. A inovação deu tão certo que hoje é utilizada em todas as escolas de samba. Se as ideias de Mestre André tivessem parado por aí, já teria sido suficiente para revolucionar por completo a história do Carnaval, mas sua influência continua. 
Bateria da Mocidade Independente, com todos os ritmistas carecas, no desfile de 1976. Foto: Eurico Dantas | O Globo.
Foi também o criador do chocalho de platinela, que veio para substituir as maracas utilizadas na época. Cumprindo a mesma função, mas com uma sonoridade melhor e mais alta, também foi uma criação que se espalhou pelas escolas de samba. Assim como é de sua autoria a criação das baquetas de tamborim cortadas, feitas a partir de um pedaço de bambu cortando sua ponta em vários pedaços, de forma que o som do tamborim se multiplicava, algo que também se espalhou pelas demais escolas. Pode-se citar ainda que foi sob sua batuta que foi criada a levada de repique clássica, comumente referida como “tucalacatuca”. Mestre André foi um dos grandes responsáveis pelo fato de o instrumento ganhar notoriedade e destaque dentro da bateria. 
Como tratamos anteriormente, tanto na Série Batuques quanto na Série Padroeiros, a influência da religiosidade africana nas baterias é um fator muito marcante, em Padre Miguel não seria diferente. Tia Chica, mãe de santo e baiana da escola que deu as cores do pavilhão da escola teria indicado a Mestre André que fizesse um toque de caixas para honrar o orixá padroeiro da escola e da bateria, Oxóssi. Atendendo o pedido de Tia Chica, o músico conseguiu criar com maestria um toque em cima do agueré de Oxóssi, dando para a bateria da Mocidade uma outra característica única no Carnaval. De forma que sempre que a alviverde pisa na Avenida é possível ouvir a cadência característica, como se a bateria preparasse o cortejo para a caça, em honra do orixá que lhe rege. (Saiba mais aqui)
Essa relação do toque de caixa da bateria da Mocidade com os seus ritmistas e com toda a escola assume um papel muito interessante quando conversam com a sua comunidade, principalmente na ligação com aqueles ligados às religiões de matriz africana. Nesse sentido, Fábio Fabato, jornalista e um dos biógrafos da Mocidade Independente, diz:
“O sentido da caçada é uma questão fundamental, que a gente tem que discorrer. A gente pode imaginar que, como a bateria da Mocidade toca para Oxóssi nesse sentido de caçada, ela desce para o centro numa caçada de axé. É a alegoria perfeita do Orixá de cabeça da escola. Então, a bateria primeiramente com o Mestre André e depois seus herdeiros, sai para essa caçada de axé, para caçar, ganhar, enfeitiçar, roubar o coração dos outros a partir do nosso axé, inserindo esse grupamento pouco conhecido no coração do Rio de Janeiro. E tudo isso tem o dedo, a mão, a alma, o apito, a batuta e o chapeuzinho do Mestre André.” 
Júnior Sampaio e Serrinha Raiz demonstram a interseção entre o Agueré de Oxóssi e a batida de caixa da Mocidade – Vídeo: Batuque Digital

Outra característica única da bateria da Mocidade, também criada nos tempos de Mestre André, é a afinação “invertida” dos surdos da Estrela Guia. Funciona assim: o que ficou comumente convencionado nas baterias das agremiações é que o surdo de primeira, que toca no segundo e quarto tempo do compasso, tem uma afinação grave, enquanto que o surdo de segunda, que toca no primeiro e terceiro tempo do compasso, tem uma afinação médio-aguda ou aguda, a depender do gosto dos diretores. Já na Não Existe Mais Quente, ocorre o contrário. Os surdos de primeira tem uma afinação médio-aguda ou aguda, enquanto os surdos de segunda tem uma afinação grave. Essa característica oferece para a bateria também uma identidade única, fazendo com que seu ritmo seja tão marcante. 
Por fim, além de todas as invenções citadas anteriormente, o legado de Mestre André permanece vivo também por intermédio da criação que talvez seja a mais inovadora: as paradinhas. É difícil pensar nas baterias de hoje e imaginar que houve um tempo em que as baterias não criavam convenções inventivas e complexas para suas apresentações, mas isso começou com o Mestre dos Mestres. 
Reza a lenda que, no ano de 1959, Mestre André conduzia a bateria da Mocidade e, enquanto riscava o chão da Praça Onze, exibindo seu talento no pé, teria caído. No momento de sua queda, seus ritmistas teriam parado de bater nos instrumentos, com exceção de apenas um ritmista, que continuou tocando seu repique. Mestre André, que de bobo não tinha nada, rapidamente se levantou e chamou a bateria para voltar a tocar dentro do compasso, e daí, teria surgido a paradinha. Dessa maneira – ou não -, foi a partir da inovação de Mestre André que não só a Não Existe Mais Quente, como todo o Carnaval se revolucionou.
Ivo Lavadeira (de boina) um dos fundadores do time Independente Futebol Clube, Mestre Djalma “Galo Velho” (de roupa listrada) um dos criadores das primeiras bossas da NEMQ, Tião Miquimba (de branco) que criou o surdo de terceira junto de Mestre André, Madureira (com o óculos pendurado na camisa) ex diretor da bateria. Todos sobre a batuta de Mestre Bereco, no FINEP Seminário Mestre André – o maestro do povo, em 2009. Foto: Fábio Fabato, acervo pessoal
Uma das grandes inovações da Mocidade foi também a criação da bateria mirim, no ano de 1969. Com isso, ficou eternizado um dos maiores momentos do Carnaval, com o encontro da bateria da escola com a dos pequenos, na Avenida Presidente Vargas. Zé Bolinho, que foi ritmista da bateria mirim neste ano, conta:
”Mestre André viu a gente brincando com os instrumentos atrás da quadra quando éramos crianças e perguntou se queríamos tocar. Foi aquela festa, uma animação danada. Ele nos ensinou e ensaiou – e eu me lembro como se fosse hoje – o encontro das duas baterias na Presidente Vargas. Num certo ponto do desfile, ele parou a nossa bateria e a da escola grande começou a tocar. Me emociono só de lembrar que fiz parte desse momento histórico.”
Mestre André, com essa inovação, criava não somente um legado de preservação para a bateria, mas também oferecia àquelas crianças uma atividade, tirando-as do perigoso ócio. 
Uma grande marca da Mocidade Independente de Padre Miguel é a força familiar que mora no seio da escola. Desde os primórdios da escola, isso pode ser mapeado: foi a família Trindade que atuou na fundação e estruturação da escola recém-fundada, passando também por Maria do Siri, que emprestou o terreno para que a escola pudesse conduzir seus ensaios à época, quando a repressão aos sambistas e aos malandros era muito forte e recorrente. E, caminhando pelos laços familiares, chegamos à família Orozimbo, que teve bastante influência no crescimento da bateria da Mocidade Independente. 
Surdo da Mocidade Independente no desfile de 2018. Foto: Dhavid Normando | Riotur
Foi dos Orozimbo que saiu um dos maiores mestres da história, não só da Mocidade Independente, mas de todo o Carnaval. Mestre Jorjão se iniciou na bateria mirim criada pelo Mestre André ainda aos 6 anos de idade, mostrando que o talento e o amor pelo ritmo havia começado cedo. Galgou os degraus comuns aos ritmistas que se destacam e se tornou mestre da Não Existe Mais Quente, carregando no sangue talvez o maior DNA da bateria de Mestre André: o amor pela inovação. Mestre Jorjão era um verdadeiro revolucionário, sem medo de arriscar, mas com conhecimento pleno de cada toque, levada, afinação que queria para as baterias que comandou.
Isso ficou marcado na sua trajetória e se destaca com mais força no ano de 1997, quando na Viradouro levou para a Avenida a famosa paradinha funk, uma momento que ficou marcado para sempre na folia do país. A mistura de ritmos “alheios” ao universo do samba plantaria uma semente para que dali pra frente diversas vezes outros mestres pudessem trazer ritmos mais complexos e diferentes para a realização de algumas paradinhas. Ainda que, no âmbito pessoal, tivesse um jeito sério, Jorjão era conhecido por ter um grande coração, além do talento e liderança inegáveis, que foram laureados com os dois Estandartes de Ouro que ganhou no comando da bateria da Mocidade, além do prêmio “Mestre André” de destaque do Carnaval de 1988, digno de alguém que veio dessa frondosa árvore. 
Mestre Dudu na batuta da Não Existe Mais Quente no desfile de 201. Foto: Gabriel Monteiro | Riotur
Outra relação familiar bem marcante na história da bateria da alviverde é a árvore genealógica da família do grande Mestre Coé, que comandou a Não Existe Mais Quente de 1995 até 2004. Seu filho trilhou seus passos, tendo adentrado a bateria da Estrelinha da Mocidade com 8 anos, mostrando que a semente plantada por Mestre André, a de ter um lugar em que essa renovação fosse feita de forma orgânica, segue dando certo. O menino se apaixonou pelo repique e trilhou vários caminhos na bateria da Estrelinha da Mocidade chegando a ser o mestre da escola mirim, para depois se tornar diretor de seu próprio pai. Hoje, mestre de Bateria da Mocidade, o mestre Dudu carrega consigo a tradição do trabalho em família, tendo ao seu lado como diretor o seu irmão Henrique Arcanjo, além de também dar continuidade ao enorme legado de mestres da Mocidade, mantendo o ritmo que marcou a escola e mostrando que uma agremiação que alimenta suas raízes sempre terá frutos a colher.
E não há como falar do legado familiar da Mocidade sem trazer a história da família Quirino. Essa história teve início em 1924, com o nascimento de Quirino da Silva Lopes, que pisou forte nesse chão, com orgulho de sua negritude, ainda que lidasse com a repressão aos sambistas naquele tempo. Nadando contra a corrente que buscava apagar a história, costumes e cultura da negritude, fez de tudo para dar continuidade à sua veia artística, trabalhando em lojas de instrumentos. Com isso, foi primeiramente tocador de pandeiro. Mas foi na cuíca, instrumento que fez pela primeira vez a partir de uma lata de salsicha vazia e uma vareta de bambu, que encontrou o seu lugar, que o consagraria para sempre. 

Assim, sua história se mistura com a caminhada da Mocidade Independente, já que morou na Zona Oeste e viu de perto o crescimento da escola de samba na qual trilharia uma gigantesca caminhada, tendo orgulho de ter posto terra no terreiro da Coronel Tamarino. Iniciou sua trajetória esquentando couro para ajudar na afinação dos instrumentos, até ingressar a bateria com sua cuíca, marcando seu lugar na história. Demonstrando seu talento, viajou o mundo com Mestre André e a Mocidade, tendo inclusive um de seus solos de cuíca eternizados na gravação “Cuíca no Samba de Uma Nota Só”, de produção de Tom Jobim.
Seu legado se eternizou a partir do seu querido instrumento, que levou para as viagens pelo mundo e, em cada lugar que passava, pegava alguma das moedas locais para colocar em sua lendária cuíca, marcando não só a história do instrumento no Brasil, com um legado de conhecimento que jamais se perderá, mas criando também uma herança física. A famosa “cuíca com as moedas” acompanhou Seu Quirino até 2006, quando ele deixou de tocá-la, mas passou para as mãos de seu filho, Quirininho, que já era percussionista e assumiu o legado do pai. Em 2010, essa lendária cuíca chegou às mãos de Eryck Quirino Neto, a terceira geração dessa grande família a pisar na Sapucaí, carregando não apenas o legado histórico do instrumento, mas novamente a cuíca cheia de moedas, que marcou história não só na bateria da Mocidade, mas também em todo o Carnaval.
As três gerações da família Quirino: Mestre Quirino, Quirino Neto e Quirininho.

Com esse capítulo, encerramos hoje a Série Batuques, na qual tivemos a honra de desvendar juntos os códigos e as mensagens que algumas das tantas baterias das escolas de samba do Rio de Janeiro trazem em seus toques e batuques. Eu, João Vítor, agradeço ao Eryck pela parceria, e também pela honra de contar um pouco da história da sua família. É baseado nessas relações inquebráveis que o samba se perpetua e não morre jamais.
Salve a cuíca, salve os Quirinos, salve a Mocidade!
Além da Série #Batuques, você pode conferir também a #SérieMulheres, lançada às segundas do mês de agosto. 





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