Durante o último mês, na Série Padroeiros, o Carnavalize abordou a relação das escolas de samba com os santos e os orixás de casa. Como refletir as identidades religiosas das suas comunidades sem se relacionar com a maneira com a qual elas regem seus batuques para colocar o cortejo na avenida? Para falar sobre isso, durante as quartas-feiras do mês de agosto, o Carnavalize vai se debruçar sobre as baterias cariocas com a Série Batuques.
Texto: Eryck Quirino e João Vitor Silveira
Revisão: Luise Campos
Investigar ritmos é perceber as ligações de um universo quase à parte, no qual as conversas se dão por sinais e pela batuta aguda dos apitos, os quais se manifestam a todo momento ditando o andamento do som. Assim, os símbolos visuais e auditivos das direções de bateria chamam a atenção dos ritmistas e se misturam na complexa melodia da orquestra que conduz a escola em sua caminhada. É dessa orquestra a missão de ser a primeira ala a começar o desfile e a última a encontrar a linha final.
E se nos propusermos a investigar as características das baterias das escolas de samba ao redor do Rio de Janeiro, seremos capazes de enxergar detalhes que fazem com que cada uma dessas verdadeiras orquestras sejam únicas e inconfundíveis. É possível chegar ao sambódromo ainda alheio à ordem dos desfiles daquele ano que está finalmente começando após o ano novo oficial carioca, pois é bem sabido que nenhum ano começa de fato até que chegue o carnaval. Mas, ao ouvir os timbres tocados e as levadas executadas pelas baterias, é possível acertar de sopetão a escola que passa pela avenida.
Quando falamos sobre baterias com particularidades e identidades tão próprias é impossível não destacar de imediato a Tem Que Respeitar Meu Tamborim. A bateria da Estação Primeira de Mangueira se diferencia em tantos pontos quanto possível, formando uma instigante orquestra rítmica. Seja pela marcação de seus surdos, batendo somente no segundo tempo do compasso, dando à mesma uma estrutura forte e pesada; seja pelo toque diferenciado das caixas de 14 polegadas (que são também chamadas na Mangueira de tarol) ou pelo toque rufado das caixas de 12 polegadas; seja pelo destaque da ala de timbal; ou pela ala de pratos dos últimos dois carnavais. Falar da bateria da verde e rosa é falar de fatores únicos.
A bela caixa mangueirense no desfile de 2018, ao lado de um repique. Foto: Dhavid Normando/Riotur |
Nos idos tempos dos anos 20 do século XX, tornou-se popular um bloco conhecido pela malandragem, com bambas respeitados e bons de briga, que desciam o morro vestidos de mulher e arrumavam confusão com os blocos que encontrassem pela frente. Tendo saído pela primeira vez em 1923, o Bloco dos Arengueiros formou a base para a fundação da Estação Primeira de Mangueira. E o grupo de fundadores, composto por gente de garbo e nome, tal como Cartola, Carlos Cachaça e Seu Saturnino, contava com componentes de primeira linha para cumprir seu objetivo de descer para o asfalto, roubar os estandartes dos outros blocos, ao mesmo tempo que protegiam com eficiência o próprio. Aquele grupo confiava sua proteção à Marcelino José Claudino, o seu Maçu.
Maçu era uma figura lendária. Segundo o próprio Carlos Cachaça, Maçu era um capoeira tão afiado e competente que nunca havia sido derrubado em uma roda de pernada. Sob sua proteção, estava justamente o estandarte do bloco dos Arengueiros, que dizem nunca ter sido perdido. Foi graças à confiança adquirida em sua batuta que, mais tarde, Maçu se tornaria o primeiro mestre-sala da escola vindoura. Em 1928, os que já foram acima citados junto a Zé Espinguela, Abelardo Bolinha e Pedro Paquetá decidiram aposentar o Bloco dos Arengueiros e fundar a Estação Primeira de Mangueira, nome oriundo da proximidade da escola com a estação de trem que atende seus arredores, que era a primeira a partir da Central.
Essa proximidade com a linha do trem origina diversas histórias que, infelizmente, não têm muita confirmação – o que é uma das características do samba, ou seja, ter contato com informações que advêm do “ouvi dos mais velhos”. Mesmo assim, é inegável uma influência dos trens na sonoridade da bateria. A batida do ritmo dos surdos da verde e rosa se assemelha e muito com os compassos ritmitos que uma locomotiva faz seu trajeto. Outra possibilidade interessante é a que conta que a marcação única da escola, uma de suas características marcantes até os dias de hoje, ter origem no fato de que, no princípio, os surdos eram emprestados e não havia instrumentos suficientes para fazer uma marcação tradicional: uma de base e uma de resposta. Entre tantas possibilidades, fato é que não existe verdade única e a cultura popular é feita exatamente desses cruzamentos tão interessantes.
A Tem Que Respeitar Meu Tamborim, sob a batuta de Mestre Wesley, no espetáculo “Matrizes”. Foto: Alexandre Macieira/Riotur. |
Sendo fidedigna ou não tais narrativas, é impossível falar da bateria da Mangueira sem falar sobre a marcação de seus surdos. Essa peculiaridade, inclusive, fez com que ela fosse denominada por muitos anos como “Surdo Um”, nome que dava força e notoriedade para esse marco único da verde e rosa, que é uma característica sem paralelos no carnaval brasileiro. Além de ser um dos traços mais tradicionais da Estação Primeira, também é, provavelmente, o que persiste com maior duração ao longo de toda história. Para que se tenha uma ideia, já ocorreram mudanças nos toques de caixas e na formação dos tamborins ao longo do tempo, mas a marcação sem resposta permanece com força total. Marcação esta que conta com diversos tipos de surdo trabalhando no mesmo compasso, como, por exemplo, os surdos Maracanã, Bola e Treme-Terra, que são instrumentos com tamanhos diferentes, mas com a mesma função e afinação. A diversidade deles se traduz em uma sonoridade única e um timbre peculiar. Além disso, o surdo-mor fazendo os cortes pontuais dentro da levada do samba tem como resultado o molho sensacional da batucada mangueirense.
Outra das características essenciais da bateria verde e rosa são as caixas. Tendo passado por transformações ao longo dos anos, desde 2019 ela tem sido alvo do resgate do toque tradicional e diferenciado que embalou títulos importantíssimos da história da Estação Primeira, como 1984 (Braguinha), 1986 (Caymmi) e 1987 (Carlos Drummond de Andrade). A retomada dessas batidas vem sendo encabeçada pelo Mestre Wesley do Repique, que assumiu a bateria da escola em 2018 e começou o seu trabalho para o carnaval de 2019 com três enfoques principais: o andamento, a limpeza do toque de caixas e a limpeza do naipe de tamborins. O próprio mestre Wesley diz em relação ao toque tradicional das caixas:
“Essa batida de caixas funcionava muito bem nos anos 1980, anos 1990. O toque funcionava e a bateria tirava a nota. Enquanto estive fora, por compromissos profissionais, observei que houve uma mudança no toque das caixas e ocorreram descontos nas notas. Então, quando entrei, quis resgatar o toque tradicional.”
Mestre Wesley deixa claro que respeita o trabalho realizado por todos os mestres que passaram por lá, assinalando que não poderia deixar de ser assim. Mesmo que ocorram mudanças, com cada novo comandante colocando a própria marca no seu trabalho, ainda assim a singularidade maior da agremiação é ter, no comando de sua bateria, mestres da casa, que conhecem suas características e as respeitam. Um exemplo claro disso é que o desenho de tamborim da Mangueira em 2020 foi criado por Rodrigo Explosão, comandante da Mangueira entre 2015 e 2018. Isso evidencia que há confiança, em via de mão dupla, entre o mestre atual e seus ritmistas, inclusive aqueles que já foram mestres.
A Rainha de Bateria da Mangueira, Evelynn Bastos, com Mestre Wesley ao lado e ao fundo, a Tem Que Respeitar Meu Tamborim, no desfile de 2020. Foto: Gabriel Nascimento/Riotur |
E Wesley sempre faz questão de frisar que ele não inventou uma batida nova, apenas resgatou o que já existia na história da Velha Manga:
”Eu fiz um trabalho grande para essa mudança. Mostrei a batida na prática, e com vídeos, dos anos 1980 e 1990. Passei para eles diversas filmagens, mostrando como a caixa era tocada e como a gente faria o trabalho a partir daquele ano. Os ritmistas entenderam o trabalho e abraçaram, tanto que ganhamos um prêmio de melhor ala de caixas do carnaval, além de termos sido agraciados com o título do carnaval de 2019, com a bateria conquistando nota máxima.”
O grande charme das caixas da Estação Primeira, como a tradição dos anos 1980 mostrava e agora vem sendo resgatada pela escola, está na confluência de levadas e timbres presentes no seio de seu ritmo. Diferente das caixas de 14 polegadas comumente utilizadas no carnaval, a caixa de 14 da Tem Que Respeitar Meu Tamborim é mais fina, sendo inclusive chamada de tarol pelos seus ritmistas. Com uma afinação mais baixa, apresenta uma levada reta na qual é possível observar uma certa influência do ritmo tocado na folia de reis, dando uma boa sustentação para ele. Já a caixa de 12 polegadas da Mangueira, essa já mais próxima da que é comumente utilizada, tem uma levada que conta com uma rufada em sua execução, além de uma afinação mais alta. A mistura de levadas, aliada ao encontro dos timbres da caixa mangueirense e o tarol verde e rosa, confere um swing sem igual para a bateria.
E, até mesmo para que se pudesse fazer esse resgate do ritmo tradicional da Mangueira, houve a necessidade de muito estudo. A trajetória completa pela qual mestre Wesley passou é motivo de orgulho:
”É como se fosse uma faculdade da vida, né? Estive envolvido na fundação da Mangueira do Amanhã, onde fui ritmista desde a fundação e mestre de 1999 a 2002. Na escola mãe fui ritmista, diretor de bateria e agora exerço a função de mestre de bateria. Eu estudei muito para estar onde estou hoje.”
A trajetória de Wesley demonstra a importância da tradição na Estação Primeira, mas é importante salientar que tradição não é sinônimo de atraso. Muito pelo contrário, a bateria da Mangueira é responsável por algumas das maiores inovações já feitas no carnaval.
Ivo Meirelles é um nome conhecido pelos sambistas e, principalmente, pelos mangueirenses. Entusiasta das inovações, em sua gestão a bateria da Mangueira trocou de apelido e também protagonizou um dos momentos mais eletrizantes e inesquecíveis da história da folia, a paradona de 2012. Entretanto, Ivo não começou a criar novidades apenas em sua gestão. Antes disso, ele foi uma das mentes por trás do Funk n’ Lata, grupo do qual o mestre Wesley também fez parte, assim como também outro personagem: Waguinho Percussão. Foi inclusive em conjunto com esse multipercussionista que Ivo Meirelles inovou mais uma vez no ano de 2010, com a introdução da ala de timbal na batucada verde e rosa.
E, segundo o próprio Waguinho Percussão, a princípio ele não colocou muita fé na proposta, achando que fosse uma brincadeira:
”Ali embaixo do viaduto, em frente a quadra, o Ivo veio com a proposta de colocar um timbal na Mangueira. Eu sempre gostei muito de Olodum, Timbalada, era ligado ao timbal, conga, etc. Mas pra mim era sacanagem. Mesmo assim eu falei: vambora! Aí o negócio foi pra frente mesmo. Começamos eu e Juninho do Vale. Em 2010, desfilamos em torno de 5 ou 7 timbais.”
E a inovação deu muito certo. Dali em diante, a ala foi crescendo, contando com nomes importantes da percussão brasileira, como Nego Feijão, Juninho Crispim, Nego Damoé, Boka Reis, Téo Bahia e Marcelão, entre outros.
Ainda que a ala de timbal da Mangueira tenha sido um sucesso e se perpetuado na bateria, inspirando outras escolas na utilização do instrumento, também ocorreram inovações pontuais dentro da bateria da Mangueira. Um exemplo disso foi a inclusão do naipe de pratos. Ainda que esse seja um instrumento comumente utilizado de forma performática, nos últimos dois carnavais, a bateria da Mangueira trouxe uma ala inteira de pratos para a avenida, mas por motivos específicos:
”No trabalho para o carnaval de 2019, a gente tinha construído a paradinha da marcha militar, mas senti que estava faltando algo. Então introduzi os pratos. Desfilamos com apenas 4 ensaios da ala. Já no carnaval 2020, senti que encaixava na paradinha funk, mas, dessa vez, ensaiamos o ano inteiro com a ala.”
Apesar de ter gostado do trabalho e do resultado, Mestre Wesley alerta para o fato de que a ala foi colocada de maneira pontual, não sendo pensada como uma inclusão permanente. Mas ele não descarta utilizar mais vezes: ”Se o enredo de 2021 render um samba que propicie o uso dos pratos, eu vou trazer de novo. Mas, se não encaixar com o enredo ou o samba, eu vou tirar.”
Enxergar essas inovações na bateria da Mangueira, ao mesmo tempo em que caminham lado a lado com a tradição incontestável da verde e rosa, é testemunhar a identidade única dessa orquestra tão singular. E, como fica claro pelas falas do Mestre Wesley e também pela confiança dos seus ritmistas, assim a Estação Primeira continuará levando para o futuro as suas tradições, ao mesmo tempo que incorpora em seu seio as experiências musicais mais diversas o possível, aliando o novo com o consolidado.
Se ainda não leu, confira os demais textos da Série Batuques sobre o Partido Alto (Estácio, Tijuca, Salgueiro e Vila Isabel); o O baticum majestoso da Portela, imperial da Serrinha e insulano e o baticumbum independente da Não Existe Mais Quente.
Além da Série #Batuques, você confere também a #SérieMulheres durante o mês de agosto.