Por Beatriz Freire, Felipe Tinoco e Leonardo Antan
A bateria sai do recuo, anunciando os últimos momentos desse nosso delicioso desfile que deu o tom do Carnavalize nas últimas semanas. A #SérieEnredos acaba com uma homenagem mais que justa para nossa amada festa por meio dela mesma. Então, folião, ainda não chore, que até o portão fechar, passarão nossas últimas alas e a alegoria final.
Nesse clima já saudoso, enredo que não termina em carnaval não tem graça, né? As escolas frequentemente dão um jeito de rodar uma temática e, ao fim, acabar falando de nós mesmos, dos sambistas, dos desfiles, do carnaval. Nós não faríamos diferente como nossa série especial. Da Candelária ao Sambódromo, listamos aqui alguns dos enredos mais marcantes que cantaram a folia e sua história. Prepare a sua fantasia para o último cortejo da #SérieEnredos e se deleite com os temas metalinguísticos, enredos que utilizaram o próprio carnaval para falar de carnaval!
“História do carnaval carioca” – Salgueiro 1965
É o pioneirismo que você quer, @? Não bastando o protagonismo do negro nos desfiles do Salgueiro durante a década de 1960, o grupo revolucionário liderado por Fernando Pamplona e Arlindo Rodrigues inovou também ao contar a história do carnaval dentro do carnaval de maneira historiográfica. Já existiriam, à época, homenagens ao samba e um desfile mais genérico da Mangueira de 1960, mas nada com proposta mais certeira como essa da Academia. O diferencial foi a inspiração no seminal livro de Eneida de Morais, que batizou o enredo, sendo uma das primeiras obras brasileiras a se dedicar exclusivamente à história da folia.
“Vamos dar uma de Shakespeare em Hamlet, o teatro dentro do teatro… o carnaval dentro do carnaval, pô”. Assim, Pamplona convenceu o parceiro Arlindo para a escolha do tema. Foi uma saída genial dos carnavalescos para a obrigatoriedade de 1965, em que todas as escolas deveriam render homenagens ao aniversário de 400 anos do Rio de Janeiro. O desfile contou com a ajuda de nomes que se tornariam famosos no universo momístico; um tal de João Trinta ajudou nos adereços e Max Lopes, outro ainda desconhecido, foi diretor de ala.
Com o auxílio de tantos grandes profissionais, a Academia do Samba deu sequência a uma série de inovações que passaram por aspectos temáticos e visuais. O uso do bombom, hoje completamente banal, foi uma grande novidade introduzida pelo grupo nesse desfile. Também se destacou como uma forte imagem desse ano a comissão de frente formada por membros da comunidade, que traziam singelas burrinhas de vime, feitas por João – então “João das alegorias”.
O grande desfile acabou conquistando o público, mesmo após o burburinho no pré-carnaval contra a série de inovações que o Salgueiro pretendia promover e promoveu. Nomes mais tradicionalistas, como o jornalista Sérgio Bittencourt, fizeram duras críticas à escola e aos profissionais vistos como “estrangeiros” na produção do desfile. Apesar da polêmica, a agremiação conquistou público e júri com suas ousadias e desbancou o favorito Império Serrano com seu também imortal “Cinco bailes da história do Rio”, de Ivone Lara e Silas, faturando o terceiro título da vermelho e branco da Tijuca.
Anos mais tarde, em 72, no último carnaval com a participação de Arlindo e Pamplona juntos, o Salgueiro faria outra novidade com uso semelhante de metalinguagem: uma homenagem para sua madrinha Mangueira, em um belo exemplo de respeito e admiração entre as coirmãs. Ainda que o samba tenha ficado para a história da agremiação, o desfile não alcançou grandes resultados.
“Vovó e o
rei da Saturnália na Corte egipciana” – Beija-Flor 1977
Nos devaneios de Joãosinho Trinta, Nilópolis pegou carona em uma viagem pela história do carnaval. O enredo contava as origens da festa e o Egito foi, segundo alguns estudiosos, um dos prováveis locais do início dos festejos. A Saturnália está ligada às comemorações da Roma antiga oferecidas ao deus Saturno, época na qual escravos eram livres, as regras sociais eram derrubadas e a festa era regada a bebidas e orgias. Entrudos e os bailes de Veneza também apareceram no enredo, que foi desenvolvido num dos grandes delírios típicos de João. Toda a epopeia momesca foi narrada por intermédio de uma vovó que, ao ver a azul e branco desfilar, recordava-se da folia como se estivesse vivido todos esses momentos.
O desfile deu sequência à série de ousadias espetaculares do artista, apostando no luxo e na opulência, mesmo que com uso de materiais comuns e baratos. Essas características todas aliadas à famosa garra nilopolitana ajudaram a garantir o caneco da azul e branco, e a Deusa da Passarela triunfou pela segunda vez na sua história.
Bumbum
Paticumbum Prugurundum – Império Serrano, 1982
Marcando a estreia da dupla Rosa Magalhães e Lícia Larceda como carnavalescas, o Império cantou a história das escolas de samba com um enredo sugerido por Fernando Pamplona, que mediou a contratação de suas discípulas pela Serrinha. O enredo foi batizado pelo mestre de “Praça Onze, Candelária e Sapeca aí”, delimitando os principais locais de desfiles, mas a dupla resolveu modificá-lo para o curioso título – uma onomatopeia que simboliza o som do surdo, inspirada em uma entrevista realizada com Ismael Silva.
A narrativa passeou pelos grandes momentos da história das escolas desde a Praça Onze, passando pela série de inovações salgueirenses décadas antes e terminava em uma crítica ao desenfreado processo de crescimento das escolas. Para isso, as carnavalescas consideraram as agremiações como verdadeiras empresas ao cantar “super escolas de samba S/A, super alegorias”. A crítica teve como protagonista Joãosinho Trinta, representado em uma das alegorias. Para arrematar, o grande samba de Aluísio Machado e Beto Sem Braço incendiou os componentes da Serrinha. O campeonato da escola veio com facilidade, desbancando outras favoritas e sendo privilegiada como a única agremiação a não descumprir a novidade do regulamento daquele ano, que proibia o uso de figuras vivas, como destaques e componentes, nas alegorias e tripés.
É hoje – União
da Ilha 1982
da Ilha 1982
Foto: Anibal Philot |
1982 foi um ano de grandes enredos metalinguísticos! Além do campeão Império Serrano, outra instituição cultural teve sua canção consagrada. E como marcou! A obra musical de Didi e Mestrinho entrou para a eternidade se tornando um dos sambas-enredo mais famosos fora da folia, ganhando várias regravações e se tornando um verdadeiro clássico da MPB. Quanto ao enredo, ele foi desenvolvido pelo jovem carnavalesco Max Lopes, inspirado em livro homônimo escrito por Haroldo Costa, que contava com ilustrações do cartunista Lan.
Apesar de ter apenas três carros alegóricos, o abre-alas, representando uma barca cheia de brincantes da Ilha para a avenida do Rio, ficou marcado na memória da folia e dos componentes da escola. Os demais elementos visuais beberam no estilo insulano do “bom, bonito e barato”, concebido pela carnavalesca Maria Augusta, como alas vestidas de pierrôs, colombinas, baianas e fantasias típicas da folia. O samba antológico contribuiu ainda para uma grande apresentação da Ilha, que terminou apenas num modesto quinto lugar. Em 2008, a agremiação reeditou os famosos versos e também terminou na quinta colocação – mas no Grupo A, organizado pela extinta AESCRJ.
“Festa Profona”
– União da Ilha 1989
“Festa Profona”
– União da Ilha 1989
– União da Ilha 1989
A escola da alegria e da leveza não poderia deixar de ter como característica enredos ligados ao maior show da terra, né? Depois de contar sua própria história em 1980 e a folia contemporânea dois anos depois, a Ilha terminou a década fazendo um desfile ainda mais profundo na folia, com seu também inesquecível “Festa Profana”.
Passeando desde os tempos mais remotos, a agremiação insulana tentou achar uma origem para festa na Grécia e no Egito, passando ainda por Roma e Veneza até chegar ao Brasil e seu entrudo. A comissão de frente trazia componentes vestidos de Rei Momo, fazendo jus aos famosos versos “o rei mandou cair dentro da folia”. O carnaval foi assinado pelo carnavalesco Ney Auan, que fez um bom trabalho plástico. O desfile ainda ficou famoso pela icônica genitália desnuda de Enoli Lara, desinibida em uma alegoria.
O samba composto por J.Brito, Bujão e Franco – que não o assinou -, apesar de ser denominado como “marchinha sem vergonha” por Fernando Pamplona, embalou um grande e animado cortejo da tricolor insulana, tornando-se mais um dos grandes clássicos da agremiação a romper a vida útil do desfile, cantado em blocos e festas. Apesar do ano conturbado, protagonizado pelo embate entre Beija-Flor e Imperatriz, a Ilha ficou logo atrás das favoritas com um honroso terceiro lugar. Em 2005, a Porta da Pedra reeditou o memorável samba e, sob a batuta do carnavalesco Alexandre Louzada, conquistou o sétimo lugar da elite.
“O samba sambou”
– São Clemente 1990
Foto: O Globo |
Olha a crítica! A tradicional escola da zona sul carrega em seu DNA mais do que a simples irreverência: também o dedo na ferida, a acidez sutil de um discurso crítico que sempre caiu bem a ela. “O samba sambou” se tornou um dos enredos críticos mais conhecidos e aclamados da escola, ajudou a contar na Sapucaí a realidade dentro do mundo das escolas de samba. A narrativa foi uma das últimas escrita pela dupla que marcou época na preto e amarelo, Carlinhos D’Andrade e Roberto Costa, e passeou por diversas incoerências e absurdos que faziam parte da espetacularização da folia das escolas. Como celebridades em busca dos holofotes da mídia até a mercantilização dos profissionais da festa e suas constantes mudanças de bandeira. Tudo junto e misturado para lembrar a nostalgia e os bons tempos dos antigos carnavais que mantinham a raiz do “verdadeiro samba”.
Uma das imagens mais marcantes foi a comissão de frente, quesito que foi destaque como um todo na trajetória da escola em seus enredos críticos. O grupo trouxe fantoches de mestres-salas sendo manipulados pelos dirigentes. Já a letra do samba, escrita por Helinho 107, Izaías de Paula e seus parceiros, casou perfeitamente com o que se viu e sintetizou bem a crítica com belas passagens. Profética, a escola pareceu adivinhar os rumos daquilo que já se desenhava à frente dos sambistas há quase 30 anos, e conquistou um sexto lugar, sua melhor posição no Grupo Especial até hoje. Ainda atualíssimo.
“Marquês que é
Marquês, do saçarico é freguês” – Imperatriz Leopoldinense 1993
“Marquês que é
Marquês, do saçarico é freguês” – Imperatriz Leopoldinense 1993
Marquês, do saçarico é freguês” – Imperatriz Leopoldinense 1993
Somos todos fregueses do saçarico, não é mesmo? A Imperatriz e nossa sempre deusa Rosa Magalhães também. Por isso, em 1993, com título baseado no Marquês de Sapucaí, burocrata que dá nome ao Sambódromo e que se tornaria bicentenário naquele ano, a carnavalesca e a Rainha de Ramos realizaram uma homenagem à história momesca, passando por todas suas formulações até a chegada dos desfiles sofisticados. Para isso, o enredo relembrou o entrudo, a serração da velha, os bailes de máscaras, os cordões e blocos, os ranchos e as grandes sociedades, realizando um retrato das origens e inspirações das escolas de samba.
Chegando a nomes mais recentes, foram saudados artistas como Fernando Pinto, Joãozinho Trinta e Arlindo Rodrigues, por meio de referências aos seus mais emblemáticos trabalhos. Além disso, Viriato Ferreira foi homenageado no último carro, com uma faixa com os dizeres “No saçarico do Marquês, tem mais um freguês: Viriato Ferreira”. A mesma frase dá título ao enredo da Acadêmicos da Rocinha de 2017, que exaltava o incrível artista falecido durante a preparação do desfile da Imperatriz de 1993, em setembro do ano anterior. Ele era figurinista de Rosa e, à época, chegou a realizar uma releitura de outro carnaval que participou e foi recordado no desfile em questão: “Ratos e urubus, larguem minha fantasia” (Beija-Flor, 1989).
“Gosto que me
enrosco” – Portela 1995
Abrindo as portas para folia, a tradicional Portela mostrou por que é uma das maiores escolas da folia carnavalesca. A maior campeã da festa vivia um grande jejum de títulos e oscilava entre boas e medianas posições quando realizou um carnaval que também protagonizou sua história. O enredo fazia parte de uma trilogia proposta por José Felix, que cantou a história do samba um ano antes, passaria pela folia naquele ano e se encerraria na apresentação seguinte sobre a música brasileira. A proposta da narrativa foi passear apenas pela história do carnaval no Rio de Janeiro, passando pelas grandes sociedades, o lendário Zé Pereira, os ranchos, blocos e cordões.
A parte plástica contou com muito requinte e luxo, apesar das alegorias não apostarem em uma grande volumetria, e sim em um aspecto mais cênico, pouco usual nos desfiles. A tradicional águia se vestiu especialmente para a apresentação, ganhando máscara e chapéu carnavalescos e um lindo ginzo no bico. O lirismo dessa junção tornou uma das mais belas aparições do símbolo portelense.
A apresentação foi coroada pelo grande samba composto por Noca da Portela, Colombo e Gelson, na interpretação memorável de Rixxa. A Portela saiu como favorita daquele ano, mas mas acabou perdendo para a Imperatriz, e sua já comentada era de ouro no casamento com Rosa Magalhães. O segundo lugar, a melhor posição da azul e branco até o desjejum de 2017, ainda machuca uma série de torcedores da escola.
“Das
arquibancadas ao Camarote Número Um ‘Grande Rio’ de emoção na apoteose do seu
coração” – Grande Rio 2010
Patrocinada por um camarote de cervejaria que controlava grande parte da área de elite da Marquês de Sapucaí, a Grande Rio promoveu uma homenagem à história do Sambódromo do Rio e de seus grandes carnavais em função do aniversário de 25 anos da inauguração da avenida. Para isso, o carnavalesco Cahê Rodrigues não só exaltou os grandes nomes da folia carioca, mas também os que ajudavam (ou ajudam) na realização da festa. Desde os funcionários de barracão até Oscar Niemeyer – que projetou esse marco arquitetônico da cidade – e Darcy Ribeiro – que dá nome à passarela e foi incentivador de sua construção durante o mandato do aliado e amigo Leonel Brizola, então governador do estado.
Como já mencionado, personagens que fizeram história foram lembrados, como Jamelão, Max Lopes, Fernando Pinto e demais carnavalescos, assim como diversos pavilhões e símbolos das principais agremiações do Rio de Janeiro. A narrativa abusou de imagens e momentos emocionantes repletos de simbologia que a Sapucaí presenciou a longo de sua história. Foi marcante também a última passagem de Joãosinho Trinta como folião do carnaval, sendo destaque do carro sobre o lendário “Ratos e urubus”. Desfiles marcantes, como Ita e Kizomba, até marcas contemporâneas, como o famoso carro do DNA de Paulo Barros, foram lembrados, criando referências de força cultural e comunicação com o público que garantiram o sucesso da apresentação. A Grande Rio conquistou um especial segundo lugar, logo atrás do campeão “É Segredo”, da Unidos da Tijuca.
“Com dinheiro ou
sem dinheiro, eu brinco” – Mangueira 2018
Encerrando essa nostálgica e deliciosa viagem pela folia por meio da folia, o carnaval de 2018 também foi marcado pelo uso da metalinguagem. Comandado pelo talentoso Leandro Vieira, a Mangueira se inspirou em uma marchinha da década de 1940 e proporcionou um dos melhores temas do ano, repleto do tom crítico que permeou diversos momentos da Marquês de Sapucaí em 2018. O carnavalesco se motivou com as discussões proporcionadas pelo demagógico corte do repasse de verbas municipais promovido pelo bispo Marcelo Crivella e resolveu realizar uma exaltação da essência do carnaval, suas raízes, sua felicidade e folia e tudo aquilo que o faz relevante para a sociedade.
Foi nesse sentido que o enredo flertou de maneira constante com o tom anárquico e liberto do carnaval de rua, e a Mangueira desfilou repleta de componentes de blocos, arrastões e demais signos que transcendem ao teor utilitário e empresarial que muitas vezes limitam o carnaval. Foram lembrados, no decorrer da apresentação, o Cacique de Ramos, o Bafo da Onça, os saberes dos bares, roupas de cetim barato e a origem dos desfiles das agremiações no centro do rio, assim como colombinas sem posses, pierrôs em desalinhos e diversos outros símbolos carnavalescos. O excelente enredo proporcionou para a agremiação o Estandarte de Ouro do quesito e auxiliou na conquista do quinto lugar, que deixou um gostinho de quero-mais para os torcedores e membros da verde-rosa.
“Entra, canta, gira, roda
Que o barracão agora é teu
Carnaval é minha moda
Todo ano o rei sou eu”
Para terminar, deixamos essa obra-prima do Arranco do Engenho de Dentro, de 1991 no grupo de acesso, que é pouco conhecida mas narra as dificuldades e bastidores da construção de um desfile com maestria. É uma forma de nos despedimos com alegria dessa temporada aqui no site.
Antes dos leitores sugerirem outras apresentações, a gente admite a dificuldade de conceber uma lista como essa! Fizemos uma seleção especial que passou por diferentes agremiações e décadas dos desfiles das escolas de samba. Não foi nada fácil largar apresentações e obras cativante no processo. Mas como a série é sobre os enredos, optamos pelos que tinham as narrativas e apresentações mais emblemáticas, deixando de lado clássicos como “Para tudo se acabar na quarta-feira”. Esse e mais sambas sobre o carnaval você encontra na playlist abaixo, especialmente realizada nessa pegada metalinguística que encerrou a #SérieEnredos! Até a próxima!