SINOPSE: Estação Primeira de Mangueira 2023 | As Áfricas que a Bahia canta

 

Quando o verde se derrama em rosa pela avenida, o céu se agita, o morro mostra seu samba como Ilú a repicar. Os ventos se assanham no girar da mãe, conduzindo os filhos de Mangueira a desfilar. Por nós, Oyá!  Por nós, Oyá!
Ela que veio de longe. Ela que veio do vento, guerreando contra todo sofrimento, de quem um dia foi obrigado a traçar um novo destino além-mar. Bantu, Haussá, Gegê, Iorubá…tantas Áfricas que na Bahia vieram a aportar.
Na alma, carregaram a bagagem de seus ancestrais; no corpo estamparam a riqueza de seus rituais. No ecoar de suas vozes, fizeram-se mais fortes, nos “batuques” e seus toques adornavam outros nortes. Na terra de todos os santos, tantas Áfricas se recriaram pelo encanto de seus cortejos, pelas histórias de seus cantos. Como bandeira de luta, como conquista das ruas, por liberdade em ser, por respeito às suas. Tudo isso através dos dias onde a Bahia é mais Bahia e ser preto é sinônimo de alegria.
Hoje, mais uma vez, iaiá mandou ir à Bahia, em tempos em que a Lei Áurea tão sonhada não havia sido assinada, mesmo que a liberdade, posteriormente, ainda fosse ilusão. Negros iam as ruas em dia de folia, desafiando toda perseguição, entoando cantares nativos, contando a saga daqueles que, infelizmente, sucumbiram pela escravidão.
Faziam festa para a sua preta rainha em forma de cucumbis, trazendo, a frente, um cortejo de rotins, afugentando todo mal que pudesse estar por ali. O arauto negro anunciava a chegada da procissão, cavalarias faziam guarda e “barbeiros” davam o ritmo com xequerês, caxambus e a marcação. Fogos dos bengalas explodiam no céu, quando, de repente, o filho da rainha morria em meio a exibição. Ela ordena ao um feiticeiro que seu filho reviva. Na sua dança mágica, o menino ganha vida, ela lhe entrega tesouros em missangas para que o cortejo prossiga, o sagrado demonstra seu poder e a corte se unifica. 
O “charme” da liberdade no papel, posteriormente, se garantia, porém a negritude estava longe de alcançar direitos e cidadania. Pelas ruas de Salvador se viam ex-cativos marginalizados, perseguidos até pela forma em que se vestiam. Era proibido “ser” africano na Bahia, mas, em dias de folia, a fantasia era ousada, com muita sabedoria se esquivavam da chibata da polícia que insistia em esquecer em que tempo estava. Seguindo a tradição preta de cortejos, se organizaram em Clubes Negros, a disputar as ruas com a burguesia, em forma de arte, protestavam contra os açoites e a serventia. As “Embaixadas” africanas impressionavam pelo luxo e incomodavam até que um dia foram vetadas…
Mesmo perseguidos, os préstitos viraram formas de sobrevivência e luta por liberdade. Atraia-se, daquela forma, os olhares da imprensa e da comunidade e, na ótica do opressor, uma ignorante sensação de “civilidade”, ao acharem possível, desta maneira, controlar a força negra da baianidade. Mas nada era mais intenso que a união do gueto, a rua e a fé, andando a pé pela cidade. Do terreiro do Engenho Velho, o céu dos orixás intervia ao unir a arte, a religiosidade e a fantasia, levando os livres toques de ijexá pelas ladeiras e avenidas. Preparava-se o padê para que Exu mensageiro fosse ligeiro abrir os caminhos para passar o Afoxé. Nessa cidade em que todo mundo é d’ Oxum, nas ruas rodam candomblés, conduzidos e protegidos pela Yalotim, onde o santo é representado, esculpido pelo talhar do Iroko. A África, desta vez, se recria pelas mãos do sagrado.
A dor que pariu Salvador, pariu seu carnaval e promoveu a explosão de grupos pretos que tomaram conta dessas vias de clave e Sol com alegria, pois ela é a revolução. A realidade dura dos guetos virava letra de canções, incorporando e renovando a herança rítmica das negras procissões. Corpos e corpas se tornaram protesto, estampando seu manifesto no vestir e no dançar. Os blocos afros reconstruíram a identidade de um povo, que passa a ter ainda mais orgulho de sair na folia a cantar, de fazer a terra tremer, pois o vulcão da Bahia é tambor de Ilê Aiyê. É pulsação de Muzenza, de Olodum e Badauê. É o Didá e dança de Malê Debalê. São as mais belas das belas deusas do ébano girando e reinando pela avenida, ao toque da batida que vira sinônimo da própria vida. Se adornam no laço afro que amarra o legado de seus ancestrais, dando cor, energia e vigor aos carnavais. Que bloco é esse, negão?
Salvador se agita no negro toque do agogô, nas quebradas com a pele pintada, nas estampas de faraós, na pipoca do trio, nos tambores do Pelô. Na mistura do Timbalada, dos sambas de roda, reggae e tantos sons que dão o tom à baianidade Nagô. Nas vozes das pérolas negras que conduzem os cortejos sem submissão de raça, sem lágrima, nem dor. O amor do povo que se lava com a força do axé, na fé do Bonfim, nos cantos do candomblé. Axé que canta e amarra em seus fios de conta a importância de ser chão africano. Axé da negrada que passa o astral da avenida todo ano. Axé que mostra que a cor dessa cidade é a mesma de Mangueira, com a força do vento, expressão da liberdade, fazendo o negro respirar felicidade.
Texto: Guilherme Estevão e Annik Salmon
Pesquisa: Guilherme Estevão, Annik Salmon e Mauro Cordeiro.

Comente o que achou:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Veja mais

Posts Relacionados

Projeto “Um carnaval para Maria Quitéria” valoriza a folia e conta com ilustrações de carnavalescos renomados

Projeto “Um carnaval para Maria Quitéria” valoriza a folia e conta com ilustrações de carnavalescos renomados

 A Jac Produções lança o projeto "Um carnaval para Maria Quitéria", que desenvolveu um estudo de desfile de escola de samba em homenagem a essa heroína da nossa independência. O

O aroma que vem da Glória: a alegria da MUG ao sabor de um samba inesquecível

O aroma que vem da Glória: a alegria da MUG ao sabor de um samba inesquecível

Arte de Julianna LemosPor Adriano PrexedesSejam bem-vindos de novo! Desta vez, nossa aventura sambística nos levará para outro destino: vamos até o Espírito Santo para conhecer a trajetória de uma

#Colablize: A infraestrutura do carnaval carioca hoje – o que precisa ser feito

#Colablize: A infraestrutura do carnaval carioca hoje – o que precisa ser feito

    Arte de Lucas MonteiroPor Felipe CamargoJá se tornou algo que os amantes do Carnaval carioca debatem e mencionam todos os anos. Com um misto de esperança, medo e reclamação,

A locomotiva azul e rosa: São Paulo nos trilhos do sucesso da Rosas de Ouro

A locomotiva azul e rosa: São Paulo nos trilhos do sucesso da Rosas de Ouro

Arte de Jéssica BarbosaPor Adriano PrexedesAtenção! Vamos embarcar numa viagem carnavalesca pela cidade que nunca para. Relembraremos uma São Paulo que, durante a folia, se vestia de cores vibrantes. De

ROSA X LEANDRO: Quando os carnavalescos ocupam as galerias de arte

ROSA X LEANDRO: Quando os carnavalescos ocupam as galerias de arte

 Arte por Lucas MonteiroTexto: Débora Moraes Rosa Magalhães e Leandro Vieira são os carnavalescos que mais tiveram seus trabalhos exibidos em exposições em instituições de arte. Além de colecionarem esse título,

A Lição da Mancha Verde: uma passagem pela história de persistência da escola e por um de seus desfiles históricos

A Lição da Mancha Verde: uma passagem pela história de persistência da escola e por um de seus desfiles históricos

 Arte de Lucas XavierPor Adriano PrexedesO ano era 2012, considerado por muitos um dos maiores carnavais da história do Sambódromo do Anhembi. A folia, geralmente, é lembrada pelo grande público

VISITE SAL60!

SOBRE NÓS

Somos um projeto multiplataforma que busca valorizar o carnaval e as escolas de samba resgatando sua história e seus grandes personagens. Atuamos não só na internet e nas redes sociais, mas na produção de eventos, exposições e produtos que valorizem nosso maior evento artístico-cultural.

SIGA A GENTE

DESFILE DAS CAMPEÃS

COLUNAS/SÉRIES