Quanta bravura cabe no coração de um homem?
Venceu a dor e o sofrimento para se tornar lenda.
Não tinha medo do combate, na certeza de que a vitória vem da luta.
Sangue guerreiro, instrumento da justiça. Herdeiro dos inquices de Nzuzu (águas) e Nzazi (justiça), trazia em si a força de duas afluentes.
Correntes se cruzaram em uma improvável mistura: Japão e África.
Tambores ritmados ecoando no desaguar de diferentes sabedorias ancestrais.
Das terras de Moçambique ao sol nascente, as marés da deusa Nzuzu conduziu um de seus filhos a um lugar distante. Pelo o vai e vem das ondas, no porto de Kyoto, esse jovem guerreiro foi guiado à nação de lendários samurais.
Vinha de mares distantes, esse tal detentor de valentia, cuja tamanha força o fazia alto e soberano. Havia sido levado de sua morada por jesuítas.
Durante o caminho das águas, aprendeu uma cultura que não era sua e acumulou muitas sabedorias, para além das que já trazia de seu povo.
O Japão daquela época tinha escasso contato com o resto do mundo, mas os bárbaros do Sul vinham de além-mar. Faziam grande estardalhaço em prol de apenas um Deus.
Em meio às peles amarelas, a negrura reluziu à luz da lua.
Lugar de grandes templos e palácios, jardins de cervejeiras e lavouras de arroz.
Toda aquela terra tinha um senhor, conhecido como daimyô. Seu nome era Oba Nobugara, quem possuía o desejo de unificar o Japão contra um período marcado por tantas guerras civis. Para isso, precisava de nobres guerreiros.
O líder era receptivo aos forasteiros, ofertando um Templo dos Estrangeiros como moradia. Certo dia, um alvoroço tomou conta do local: todos queriam ver o homem que brilhava ao luar. Em um lugar no qual a pele preta assusta, o filho de Nzuzu e Nzazi despertou curiosidade.
Ao encontrar uma figura tão nobre, o senhor pensou que se tratava de uma artimanha dos estrangeiros para impressioná-lo. Ordenou que banhassem o homem alto, tentando limpar sua pele. Na água, escorrendo sobre a melanina, veio, em verdade, o motivo de orgulho. Sua cor reluziu. Não havia sujeira, havia beleza. Beleza guerreira.
Escudo próprio forjado por seus ancestrais. Sua armadura, até ali, tinha sido sua raça.
Convencido de seu erro, Nobugara reconheceu naquele homem a potência de um guerreiro. Nasceu uma bela amizade entre dois fortes combatentes.
O daimyô, então, batizou o forasteiro filho de Nzuzu e Nzazi: Yasuke.
Além de seu vigor físico, Yasuke se destacou por sua sabedoria e sagacidade. Alinhava corpo e mente. Com sua alma nobre em território livre, poderia ser o que quisesse.
Tornou-se aquele que serve a um senhor, um samurai.
A lenda do guerreiro com a força de dez homens correu os sete ventos.
Além dos combates, passou muitas tardes tomando chá em animadas e prazerosas conversas com o senhor. Tornaram-se inseparáveis.
Mostrando-se digno, a mais nobre honraria lhe foi dada. Espada forjada no fogo.
Instrumento de justiça, nobre obá. Herdeiro da bravura de Nzazi.
Vermelho do justiceiro na Terra do Sol Nascente.
Entre lutas e guerras, o poder do senhor Nobugara só crescia, espalhando-se por mais lugares. O nobre, contudo, não contava com a traição de um dos seus. Foi assim que teve início um grande confronto que derramou muito sangue.
Yasuke lutou até o último momento. Porém, derrotado por uma emboscada armada em um templo, o senhor se sacrificou. Coube ao negro samurai um último ato de coragem: o de tirar a vida de seu próprio mestre, levando a valentia do seu mentor adiante. Escorreu a lágrima clara sobre a pele escura. Entregou sua espada aos traidores, vendo o templo arder em chamas. As cinzas, então, espalharam ao vento mistério e incerteza.
Não se sabe se ele sobreviveu ou qual foi o fim que levou o lendário guerreiro.
De certo, tamanha bravura não pode ser apenas carregada pelo vento e, por isso, diz a lenda que o espírito de Yasuke ressurge no corpo de cada jovem preto.
Principalmente, na São Paulo onde negros e asiáticos fazem Morada.
A cidade mais japonesa fora do arquipélago oriental. E, paradoxalmente, a que também mais mata jovens negros.
Diante de um mundo em que a pele preta assusta, é necessária uma armadura de samurai para enfrentar cada dia. Samurais da Quebrada, combinados em não morrer.
Na Mocidade Alegre, todos possuem sangue guerreiro. Vestem-se de suas armaduras; trajam suas fantasias para enfrentar mais uma luta pela vitória no Anhembi.
Benditos, louvados sejam! Aqueles que que encaram suas batalhas, independentemente dos temores do combate.
Texto: Leonardo Antan
Criação e desenvolvimento do enredo: Jorge Silveira e Ricardo Hessez
Glossário
Nzuzu – É a deusa banto das águas, equivalente a Yemanjá.
Nzazi – É o deus banto da justiça, equivalente a Xangô.
Moçambique – País africano de onde Yasuke provavelmente é originário, optou-se pela denominação moderna do território para demarcá-lo.
Kyoto – Antiga capital do Japão na época feudal.
Daymiô – Senhores de terra do Japão feudal.
Obá – Ministro de Xangô, orixá da justiça.