(Este enredo é uma ficção. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência. Ou não…)
“Meus conterrâneos, minhas concidadãs!
Neste espaço sapucaisticamente concebido para laurear os grandes vultos e acontecimentos deste pujante Brasil, elevo minha voz entusiasticamente para galardoar a obra de um apoteótico romancista, novelista e teatrista. Seu nome é no plural. Sim, no plural, porque não era apenas um. Era um bocado de gente que morava dentro de uma cabeça trepidante que vivia maquinando os causos e as astúcias de gente como eu, ou você, ou você e eu, e vice-versa. Um audaz dramaturgo cognominado Dias Gomes! Um valoroso artista, que com inventividade, prodigiosidade e, por que não dizer, vanguardisticidade, fez com que as histórias do seu povo corressem léguas e léguas por esse país de auriverde pendão.
Mas botando de lado os entretantos e partindo logo pros finalmentes, eu venho até vocês para fazer baixar neste sacralíssimo terreiro as distintas personalidades que esse luzente autor trouxe para a imortalidade dos nossos palcos e para a vitaliciedade das nossas telas. Vejo esculpido e encarnado em cada um dos senhores e senhoras a marca presente em todo ombro humilde que carrega a sua cruz pelas beiras das estradas da vida. Sim! Eu vejo a imagem e semelhança do fiel pagador de promessa de quem a sanha intolerante deu cabo na porta da igreja de Santa Bárbara, no preciso momento em que o despossuído cidadão cumpria a digna missão que Iansã lhe determinou: entrar na casa do Senhor com o símbolo da sua penitência e repartir o pouco que tinha com os desamparados. Até posso ver, meus abismadíssimos senhores e minhas perplexíssimas senhoras, o corpo estendido no chão, tombado e depois triunfalmente elevado como o Salvador entre dois pedaços de madeira cruzados, ao som dos din-din-don-dons dos berimbaus dos capoeiristas e do coro das filhas e das mães de santo. E em verdade eu vos digo: Oyá por nós, minha Santa Bárbara! Esse povo não sabe o que faz…
E meus engalanados compatriotas e minhas licorosas citadinas, ainda nessa peleja dos divinísticos contra os profanísticos da fé, se Deus e o Diabo descerem à Terra, sem guarda-chuva, sem bandeira, bem ou mal, certamente haverão de acertar as contas com seus santos. (Ou com seus demônios, que seja). Foi o que aconteceu lá nas plagas de Asa Branca, o berço do herói, onde o mito Roque Santeiro ressuscitou sem ter morrido, assim como a Porcina foi viúva sem nunca ter sido. Enquanto isso, na morna e cheirosa Sucupira, a brejeira Pérola do Norte, o povo não tinha nem onde cair morto. Literalmente! Por não contar com um cemitério para enterrar seus funéreos cidadãos, teve finado que seguiu por aí balançando a própria difuntice tendo que ser enterrado em município estrangeiro. Criou-se então uma justa demanda, mas que por falta de cadáver, acabou virando um elefante funesto e branco, como muita coisa que acontece numa terra acolá que eu não vou nem me atrever a dizer o nome. Numa cova bem cavada jaz a decência da política, na qual os que deveriam zelar pelo bem do povo acabam por acender uma vela pra Cristo e outra pra Judas a fim de salvar a própria pele e guarnecer o próprio bolso. Mas nada de revolta popular! Como disse um dia alguém que perdeu a inexorável chance de ser nominalmente citado nesta parabolagem pra dormitar bovino, eu brado: “Sucupira: Ame-a ou Deixe-a!” Então, deixa tudo torto mesmo e bora tocar pra frentemente.
Pegando o rumo pra cidade grande, o que se avista, minha urbanística e modernística plateia? Não sabem não? Pois eu digo a vocês! Uma paisagem tomada de alterosas edificações feitas de cimento, aço e poderoso capital. Ali se viu mais um bate-estaca e menos um sobrado. Mais uma obra de monumental imponência e menos uma vegetação! Uma vertiginosa plantação de vidro e pedra se levantando do chão para agredir o espaço, erguendo mais alto a voz do vil metal, que dá o seu recado natural: este mundo nada mais é que um grande latifúndio. É muita terra pra pouco dono! Eis que então a batida ritmada da construção se confundiu em dado instante com o prugurundum do surdo que marca o tempo do samba. A Bandeira 2 rodou freneticamente no asfalto quente onde o corretor zoológico virou o Rei de Ramos, do Carnaval, das cabrochas, dos milhões de gigantes a construir. Assim falou Martim Cererê, o profeta do impoluto destino brasileiro que um dia haverá de prosperar baseado na sua miscigenada genealogia. Mas enquanto esse dia não chega, vamos nós vivendo o nosso realismo fantasticamente.
E no final desse sarapatel temperado de dendê, eu convido cada um de vocês a vir bulir no caldeirão do mistério… Abra o olho e venha ver as coisas do arco da velha que se sucederam em Bole-Bole, a cidade do absurdo. Um pedaço de lugar em que tudo podia acontecer, até mesmo uma alucinada contenda histórica que mobilizou toda a população local. Divididos em dois blocos, os mudancistas e os tradicionalistas, os polarizados bole-bolenses se digladiaram para decidir se o nome da cidade mudaria ou não para Saramandaia. Enfim, sendo saramandaísta ou bole-bolista, o fato é que se tratava de uma terra de gente muito peculiar. Lá havia homem que virava lobisomem, dama ardente que pegava fogo, tinha o coronel que botava formiga pelas ventas e até a redondística e circunferente dona que não parava de comer. E no meio desse bole e rebola no bole-bole-bolacho, tudo era mistério no voar do enigmático herói que nasceu com um par de asas. Um sujeito de mentalidade alada, que botou a imaginação pra correr céu, assim como o artista que criou toda essa gente de forma genial, extraordinária, e como não dizer… estupendamente engenhosa!
E terminando sem mais retardamentos nem atrasamentos, eu me despeço com uma mensagem sobre todos aqueles que desafiarem a capacidade de criação popular da nossa gente: ELES SÃO MUITOS, MAS NÃO PODEM VOAR!”
“Eis aqui o berço do autor
Que inventou uma terra terna e vil
Um lugar talhado em fé e dor?
Ou apenas um espelho do Brasil?
E quando vier a cena derradeira
O povo unido a lutar sem medo
Derrotando a fúria traiçoeira
Desfilará o seu mais belo enredo
Por fim restará a esperança
Na alma desta incansável audiência
Afinal toda e qualquer semelhança
Não terá sido mera coincidência!”
Viva Dias Gomes!
Enredo de: João Vitor Araújo
Texto: João Gustavo Melo