SINOPSE | Unidos do Viradouro 2021: Não há tristeza que possa suportar tanta alegria!

 

“Depois da energia elétrica, da energia atômica,
Só uma terceira energia chamada alegria
Poderia realizar grandes eventos.”
(A genialidade profética de João Jorge Trinta)
Corações à espera:
– Que será do carnaval?, questionam os sambistas na festa da penha, no oito de dezembro de 1918, séc. XX.

  David Butter, jornalista e pesquisador do carnaval, descreve:

“à época, a festa da penha era um terreno de teste para canções, onde se esbarravam figuras das sociedades, dos ranchos, dos blocos e da incipiente música popular brasileira. Para lá, mudava-se por alguns dias, a pequena África, com as tias baianas e suas barracas.”
  O matinal o Paiz, em 03 de março de 1919, descreve:
“O carnaval não morreu. Vingou-se gloriosamente das restrições que o passado lhe impôs na guerra e prestou um ótimo serviço de fazer escurecer a visita macabra da ´espanhola`.”
  Extinta a dor da primeira guerra mundial. Asfixiada a gripe espanhola.
  Findo o ano de 1918.
  1919.

“E o mundo não se acabou.”
(O carnaval de 1919 foi uma das inspirações para o compositor Assis valente – Música eternizada na voz inesquecível de Carmem Miranda).
Os cronistas dos principais jornais da cidade assinam como pierrot as notícias matinais que prenunciam a chegada do carnaval. No jornal o malho, a charge do cartunista hélios seelinger revela em nanquim traços de saudosos foliões esquecidos do imaginário popular. Momo deixa de ser tratado como rei, é elevado aos céus para ser glorificado como deus, no dia 1º de março de 1919.
Confino a tristeza, me despeço das trevas. Rompo o isolamento de uma infinda solidão. Calçadas testemunham passos contidos, janelas se entreabrem. Inebrio-me com os ares do marca-meu-coração. A casa das fazendas pretas retira os fardos de um luto elegante, que vestiu a dor dos últimos tempos – em seu lugar o lume dos brocados, das rendas e cetins. Entrelaço o olhar nas fitas métricas da boutique le France, recebendo os primeiros foliões. Céu desenhado por varais de ventarolas da casa buis, na rua do ouvidor. A nova dama do cabaré se faz presente nas esquinas da avenida Mem de Sá, seguindo o legado da cafetina Alice Cavalo de Pau, dizimada pela gripe. Sou um pierrot em recesso das redações de jornais. Faço parte da nata da sociedade que se prepara para o último baile pré-carnavalesco do clube dos democráticos. Evoco a vingança da vida!
“…assim é que é, viva a folia!
Viva momo, viva a troça!
Não há tristeza que possa suportar tanta alegria.”
(Canção de baile do pré-carnaval dos democráticos, autor desconhecido, 1919).
O carioca instaura a desforra da peste na primeira manhã de um carnaval. Ensaio um canto a contemplar a concentração dos préstitos das grandes sociedades: a barca da vitória, do clube dos Democráticos; a hespanhola, do Tenentes do diabo e o icônico chá da meia-noite, dos Fenianos. Parto no bonde da vingança para a praça da república, conduzido pelo popular jamanta – desvairado folião a retomar a nossa delirante fantasia de viver, levada por espíritos revoltosos. Esbarro nas cocotas emplumadas e me embriago num ardente xarope de calibrina. Desfaço a melancolia de uma face mal-ajambrada, que revela o sorriso envolto à alegria do bloco carões mascarados.
Nas ondas da avenida beira-mar, dou cor à angústia em folhas de papel crepom. Contemplo corsos engarrafados de flertes e melindrosas. Autos que figuram deusas ávidas, despertando o olhar sensual do jovem Nelson Rodrigues. Bandas marciais fanfarram por coretos e boulevards ao denotarem o traço art decò de J. Carlos. Numa das esquinas da Rio Branco, de um bar, exclama um folião: – chegou o caveirinha! Mestre que driblou a morte a desfraldar seu pavilhão, no primeiro desfile do cordão da bola preta. Peço exílio a milhares de corações aglomerados no bloco do eu sozinho – cortejo que rendeu ao folião Júlio Silva, 53 memoráveis carnavais. Nas matinês, o moleque mestiço com chapéu de jornal tico-tico, em que retrato o rio em palavras e desenhos. O beijo na serpentina declara um amor que se desdobra nas batalhas de flores da avenida central.
Reside em mim a eterna fantasia de um palco reanimado. Pernaltas vibram cornetas, que prenunciam os bilhetes dos grandes bailes de clubes e theatros. Escadarias conferem um refinado bailado, sacadas preenchem vivências que revelam a fúria de uma metrópole em festa. Orquestras animam valsas, dando um baile em qualquer tristeza. Bombons adoçam sentimentos. Na luz da ribalta, o equilíbrio dos artistas do circo american-france. Figuras macabras de um salão (diabinhos, morcegos, bruxas) curvam-se à sombra de aplausos aos heróis da cruz vermelha. Descortino lembranças heroicas de vestes bordadas por sagradas mãos do caldeirão da praça onze.
O  carnaval é do corpo e o samba é de alma preta. Na pequena África, reverencio as tias curandeiras que extirparam o mal da gripe de centenas de baianos e mestiços. Borboletas negras clamam a transformação para uma sociedade igualitária. Guerreiros paladinos empunham lanças tribais pela legitimidade do samba – que se faz o principal gênero musical do carnaval. O folclórico grupo caxangá, de João Pernambuco, germina a criação dos oito batutas. Entraram Donga, China e Pixinguinha – a primeira linhagem de sambistas. O lenço negro caído dos sobrados dá lugar ao colorido de estandartes dos ranchos. Evoco o senhor da cura! Cubra-nos com suas palhas! Que teu xaxará afaste de vez todas as mazelas que vierem tocar os sambistas.
O único contágio possível? A alegria.
“A alegria estava entre nós,
Era dentro de nós que estava a alegria.
A profunda e silenciosa alegria.”
(“Sonhos de uma terça-feira gorda”, de Manuel Bandeira).
 
Ar libertário na manhã de um último dia de carnaval. Um rio em transe, de almas cantantes, em uma catarse de alegria.  ´´desmascaro“ um rio que o próprio rio não conhecia – esperança para os dias atuais. Volto aos dias calorosos, dos abraços afetuosos como todo carioca preza. Corpos que se transpassam, mãos que se unem nos reencontros familiares– folião-original a exorcizar toda saudade. Figuram tribos ébrias, corações perambulantes em estado de graça. Euforia que não derrubou a sabedoria dos foliões mais antigos a procurar, na quarta de cinzas, os seus. Pulsa no epicentro da capital, o destemidos do conselheiro, que clama revanche a se ouvir do outro lado da baía de Guanabara.
Aportam na enseada os revanchistas da cidade sorriso, lançados dos corredores da barca xix, Nictheroy-Rio. Alguns ensaiam um funambulesco banho de mar. Outros desembarcam sonhos de uma apoteótica travessia de balão. Sob um sol estridente, esvaíam-se cantoria adentro, embalados pelas composições do poeta barretense zé de matos. O rio de janeiro, memorável, desperta com a emoção que formaria, mais tarde, o chão da unidos do Viradouro.
Adormeço em meio aos últimos foliões resignados: eram trapeiros que carregavam palmos de confetes e serpentinas de uma troça sem fim. Quarenta toneladas de uma folia que teve papel histórico. Retomar a vida pela alegria no maior carnaval de todos os séculos.
“Na quarta-feira de cinzas,
O rio despertou convicto
De que vivera
O maior carnaval de sua história.”
(“Metrópole à beira-mar, o rio moderno dos anos 20”, de Ruy Castro).
Estou me guardando para quando o carnaval chegar.
(Autoria enredo, texto) Marcus Ferreira e Tarcísio Zanon – carnavalescos

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