5x São Clemente: A crítica irreverente da escola da Zona Sul

Por Beatriz Freire

Na onda dos enredos críticos, muitas escolas têm aderido ao eixo temático, e a São Clemente, escola que construiu sua identidade sob o véu das denúncias irreverentes, volta ao seu berço para reencontrar seu DNA construído a partir da década de 80. Sendo assim, o Carnavalize separou cinco desfiles fundamentais para entender a alma da escola da Zona Sul e embalar os próximos enredos que virão, inclusive com a própria escola, no carnaval de 2019.

QUEM CASA QUER CASA (1985)
Comissão de frente da preta e amarela da Zona Sul (Foto: Tantos Carnavais)

Ao ano final da lenta e gradual abertura do regime militar, a São Clemente, no auge de uma crise econômica, levou à Sapucaí a denúncia verossímil de tantas pessoas que não tinham onde sequer morar. “Quem casa quer casa” foi um enredo desenvolvido por Carlinhos D’Andrade e Roberto Costa para mostrar a realidade do déficit habitacional no Brasil, desde a barriga da mãe, passando pelos caminhos da vida, até o cemitério. A comissão de frente trazia componentes com vestes que eram metade vestidos de noiva e metade ternos, representando casais que saíam em busca do sonho da casa própria, uma apresentação digna e vencedora do Estandarte de Ouro. A escola não tinha lá os luxos das grandes potências da época, o que acabou prejudicando o desempenho visual no julgamento, mas o ponto positivo foi o aguerrido samba composto pelos grandes Izaías de Paula, Helinho 107 e Rodrigo, que fazia jus ao gritos de “olha a crítica”, que a escola passou a carregar. Apesar do rebaixamento no fim da quarta de cinzas, o desfile de 1985 coloca a escola na posição ativa de porta-voz das mazelas da sociedade. 

CAPITÃES DO ASFALTO (1987)

Abertura da escola no carnaval de 1987 (Foto: Jornal OGlobo)
Já no carnaval de 87, ainda seguindo o eixo temático que criou a identidade da escola, a São Clemente mostrou ao mundo o abandono das crianças e adolescentes com o inesquecível “Capitães do Asfalto”, enredo desenvolvido também pela dupla Carlinhos D’Andrade e Roberto Costa. O desfile contou a história dos menores abandonados, embalado por um dos maiores sambas da escola, composto por Izaías de Paula, Jorge Moreira e Manuelzinho Poeta, e traçou a comparação entre a vida de um menino que tinha uma infância de luxo e a de um menino fadado a crescer e aprender o que a rua poderia ensinar. A escola, recém-chegada do segundo grupo, ainda emocionou ao levar para a Avenida uma ala de meninos que eram moradores de rua, conquistando, ao final da disputa, um honroso sétimo lugar. E, mais uma vez, mostrou-se atemporal ao retratar a realidade que não mudou neste mais de 30 anos que se passaram. 

E O SAMBA SAMBOU (1990/2019)
Comissão de frente que levou o Estandarte de Ouro em 1990 (Extraída de Galeria do Samba)
Ah… que saudade da Praça Onze, dos grandes carnavais e também da acidez clementiana. Depois de dois anos amargando posições ruins na classificação geral, a escola da Zona Sul deu seu grito de crítica às grandes transformações e ao “sabor comercial” que permeou (e vem permeando) as escolas de samba a partir de meados da década de 1980 com os enredos patrocinados, vendas de cargos de rainhas de bateria para celebridades e o troca-troca da dança das cadeiras sem nenhuma valorização da fidelidade ao pavilhão. E foi assim que “E o Samba Sambou” fez o povo cantar e vibrar nas arquibancadas. A comissão de frente da escola foi, novamente, a vencedora do Estandarte de Ouro, representada por fantoches de mestre-salas controlados pelos dirigentes das agremiações, e o samba-enredo, composto por Helinho 107, Chocolate, Mais Velho e Nino, profetizou toda a espetacularização da festa que hoje, quase 30 anos depois, ainda é uma realidade. O sexto lugar conquistado naquele ano foi o melhor resultado da escola em toda sua trajetória no Grupo Especial e, em 2019, sob comando de Jorge Silveira, a escola abre o pano do passado para rememorar e atualizar as críticas ao universo interno e aos bastidores do maior espetáculo da terra na reedição do enredo. 

BOI VOADOR SOBRE O RECIFE: O CORDEL DA GALHOFA NACIONAL (2004)
(Imagem extraída de site Apoteose)

Em 2004, num cenário político complicado para ministros e demais engravatados, a São Clemente regressou até o Recife de Maurício de Nassau para contar a história da galhofa no país, tendo como guia o boi voador que passou pelo céu pernambucano, atração para inauguração de uma ponte recém-construída e, para recuperar os investimentos, foi exigido o pedágio. Sob batuta do brilhante Milton Cunha, o enredo buscou conciliar passado e presente, à época, para contar os rumos do Brasil. O desfile, apesar de contar com um excelente samba, não cumpriu requisitos suficientes para garantir a permanência na elite da folia, mas a São Clemente realmente nos fez acreditar que, aqui, o que é sério é carnaval…

CHOQUE DE ORDEM NA FOLIA (2010)
O desfile de 2010, assinado por Mauro Quintaes (Foto: Wigder Frota)
Depois de um ano de expediente na Série A, em 2010 a São Clemente viu a chance de voltar a desfilar pela elite carioca. O enredo escolhido, denominado “Choque de Ordem na Folia”, foi desenvolvido por Mauro Quintaes e usou como mote o programa do então prefeito Eduardo Paes para embarcar numa crítica do mesmo teor de “E o samba sambou”, a fim de mostrar a desordem interna das escolas de samba. Versos do próprio samba relembraram a profecia da escola vinte anos antes, como “eu bem que te avisei que o samba um dia ia sambar”, e a irreverência de letra e melodia feitas por Luiz Carlos Ribeiro e seus parceiros proporcionou um desfile animado e leve para a São Clemente. No fim da quarta-feira de cinzas, a escola saiu vitoriosa e retornou ao Grupo Especial, onde permanece até hoje, quase nove carnavais depois da ascensão.

LEIA MAIS:
– SINOPSE: São Clemente | “E o Samba Sambou…”
– #SérieEnredos: Carnavais de carnavais – Metalinguagem nos desfiles

Comente o que achou:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Veja mais

Posts Relacionados

Projeto “Um carnaval para Maria Quitéria” valoriza a folia e conta com ilustrações de carnavalescos renomados

Projeto “Um carnaval para Maria Quitéria” valoriza a folia e conta com ilustrações de carnavalescos renomados

 A Jac Produções lança o projeto "Um carnaval para Maria Quitéria", que desenvolveu um estudo de desfile de escola de samba em homenagem a essa heroína da nossa independência. O

O aroma que vem da Glória: a alegria da MUG ao sabor de um samba inesquecível

O aroma que vem da Glória: a alegria da MUG ao sabor de um samba inesquecível

Arte de Julianna LemosPor Adriano PrexedesSejam bem-vindos de novo! Desta vez, nossa aventura sambística nos levará para outro destino: vamos até o Espírito Santo para conhecer a trajetória de uma

#Colablize: A infraestrutura do carnaval carioca hoje – o que precisa ser feito

#Colablize: A infraestrutura do carnaval carioca hoje – o que precisa ser feito

    Arte de Lucas MonteiroPor Felipe CamargoJá se tornou algo que os amantes do Carnaval carioca debatem e mencionam todos os anos. Com um misto de esperança, medo e reclamação,

A locomotiva azul e rosa: São Paulo nos trilhos do sucesso da Rosas de Ouro

A locomotiva azul e rosa: São Paulo nos trilhos do sucesso da Rosas de Ouro

Arte de Jéssica BarbosaPor Adriano PrexedesAtenção! Vamos embarcar numa viagem carnavalesca pela cidade que nunca para. Relembraremos uma São Paulo que, durante a folia, se vestia de cores vibrantes. De

ROSA X LEANDRO: Quando os carnavalescos ocupam as galerias de arte

ROSA X LEANDRO: Quando os carnavalescos ocupam as galerias de arte

 Arte por Lucas MonteiroTexto: Débora Moraes Rosa Magalhães e Leandro Vieira são os carnavalescos que mais tiveram seus trabalhos exibidos em exposições em instituições de arte. Além de colecionarem esse título,

A Lição da Mancha Verde: uma passagem pela história de persistência da escola e por um de seus desfiles históricos

A Lição da Mancha Verde: uma passagem pela história de persistência da escola e por um de seus desfiles históricos

 Arte de Lucas XavierPor Adriano PrexedesO ano era 2012, considerado por muitos um dos maiores carnavais da história do Sambódromo do Anhembi. A folia, geralmente, é lembrada pelo grande público

VISITE SAL60!

SOBRE NÓS

Somos um projeto multiplataforma que busca valorizar o carnaval e as escolas de samba resgatando sua história e seus grandes personagens. Atuamos não só na internet e nas redes sociais, mas na produção de eventos, exposições e produtos que valorizem nosso maior evento artístico-cultural.

SIGA A GENTE

DESFILE DAS CAMPEÃS

COLUNAS/SÉRIES