Carnavalizadores de Primeira: Mestre André, o mestre dos mestres – A genialidade do maestro do povo

 

Texto: Eryck Quirino e João Vitor Silveira
Revisão: Felipe Tinoco
Em homenagem aos 40 anos do falecimento de Mestre André, lendário comandante da bateria da Mocidade Independente de Padre Miguel, o Carnavalize está promovendo uma série de conteúdos para ressaltar a importância de José Pereira da Silva para a história do nosso carnaval. Pretendemos retratar a sua trajetória até chegar ao posto que revolucionou, perpassando sua influência na folia enquanto desempenhava a máxima função sonora dos desfiles, até o legado que deixou para o nosso carnaval. Embarque conosco nessa jornada, e vamos aprender cada vez mais sobre esse baluarte. Você pode conferir aqui nosso vídeo no youtube também sobre o maestro. 
Entre becos e vielas, a história das origens do samba e do carnaval carioca é bem documentada. Mesmo com as informações perdidas nas palavras, carregadas pelo vento, até certo ponto somos capazes de estabelecer trajetórias mais nítidas e fundamentadas sobre como o samba se difundiu a partir da Pequena África, da região do Cais do Porto, da Saúde, e se espalhou pelo Rio de Janeiro, chegando aos pontos mais centrais da cidade, em diversos segmentos. Na maneira como esse samba se revolucionou com a turma do Estácio, como ele se influenciou com a galera do Morro da Mangueira e como ele tocou o coração dos bambas de Vila Isabel até os baluartes de Madureira…
Temos ainda, porém, lacunas a preencher nessa caminhada quase etérea do samba até chegar à Zona Oeste. Não exatamente na história dessas figuras, pois a sua comunidade faz um trabalho essencial de preservar a memória dessas peças fundamentais para a construção do samba na cidade do Rio de Janeiro. É preciso aumentar a percepção dos mecanismos que trabalharam para mover a nossa cultura ao longo dos anos para além do eixo central da cidade. Por isso é tão essencial levantar quantas vezes forem possíveis o nome de Mestre André, visto que ele faz parte desse processo tão necessário de expandir os nossos horizontes. 
Mestre André em seu retorno para a Mocidade em 1967, após desfilar por um ano na Portela. Foto – Arquivo O Dia
Pois é impossível abordar a construção da nossa cultura sem passar pela figura de Mestre André. Porque a mente de José Pereira da Silva foi tão genial em inovar, e aqui não somente dentro de suas próprias ideias, como também em conseguir dar eco à criatividade de seus ritmistas. Ele revolucionou completamente a maneira como se estrutura, como se toca e como se organiza uma bateria de escola de samba. E a relação é imediata: se não podemos falar do carnaval das escolas de samba sem a inserção providencial e indispensável das baterias, e se não podemos falar das baterias sem falar de Mestre André, não será possível falar de carnaval sem falar do Mestre dos Mestres.
Até mesmo porque o conceito de um mestre propriamente dito surgiu consigo. Foi o primeiro entre os nossos comandantes a ser amplamente chamado de mestre. E não somente pelo seu controle, influência, entrosamento e parceria para com seus ritmistas; o arrebatamento que as apresentações da Não Existe Mais Quente eram capazes de provocar não deixava espaço para que ele fosse somente um diretor. Longe de menosprezar o termo, inclusive, que é muito bem utilizado nos dias de hoje para designar aqueles que desempenham a função essencial de auxiliar os mestres em suas empreitadas.
Neste momento, no entanto, o conceito de mestre supera algumas barreiras. Talvez a principal delas seja a relação daquela figura com o público de fora da sua comunidade de origem. Possivelmente sejam devaneios de uma mente inquieta, mas diretor me parece talvez a visão de alguém que tem a liderança daquele grupo, que é capaz de comandar aqueles ritmistas em prol do seu objetivo. Mas há algo de belo, mágico e místico em considerar alguém o mestre de uma bateria; ele detém todas as qualidades e os adjetivos de um diretor, mas tem uma concepção da palavra que se relaciona com o que Mestre André fez:
“Pessoa que ensina uma arte ou ciência”
Ver a Não Existe Mais Quente passar não se tratava apenas de testemunhar uma grande apresentação de uma grande bateria. Era aprender. Era entrar numa sala quando o professor diz seu nome na chamada, responder “Presente!” com entusiasmo e se preparar para assistir uma aula do quesito bateria de escola de samba. E não há dúvida de que aprendemos a nossa lição com as aulas proporcionadas por Mestre André e seu glorioso time de instrutores com nomes como Tião Miquimba, Carlinhos Coca, Fumão, Dengo, João Branco, Djalma Nicolau e outros mais. 
Ivo Lavadeira (de boina) que era cunhado de Mestre André e um dos fundadores do time Independente Futebol Clube, que daria origem à Mocidade Independente; Mestre Djalma “Galo Velho” (de roupa listrada) um dos criadores das primeiras bossas da NEMQ; Tião Miquimba (de branco) que criou o surdo de terceira junto de Mestre André; Madureira (com os óculos pendurado na camisa) ex diretor da bateria. Todos sobre a batuta de Mestre Bereco, no FINEP Seminário Mestre André – o maestro do povo, em 2009. Foto: Fábio Fabato, acervo pessoal
Aliás, como é possível dizer que não aprendemos a lição? Se a maior parte das escolas de samba tocam o repique da maneira que tocam hoje em dia, devemos ao time de bambas comandado por Mestre André, que revolucionaram o instrumento e introduziram a levada conhecida como “tucalacatuca”, a qual se difundiu pelas demais agremiações. Tal como uma ciência, se hoje temos os mais nobres estudiosos e pesquisadores da ciência do repinique, devemos aos cientistas que promoveram experimentos e estabeleceram uma das “Leis de André”, com direito à inspiração livre das Leis de Newton. É material para um bimestre.
Falando das “Leis de André”, errôneo seria não versar acerca da grande genialidade que surgiu de sua parceria com Tião Miquimba, na invenção do surdo de terceira. Apesar da evolução na maneira como se encara e como se toca um surdo de terceira, tudo se fundamenta em cima daquela base forte e bem estruturada que veio das bandas de Padre Miguel. Fechando o ciclo das sonoridades dentro do naipe, com grave, médio e agudo, finalmente se concluiu a aproximação com a nossa ancestralidade africana no Rum, no Rumpi e no Lê. Temos aí mais um bimestre completo. 
A Não Existe Mais Quente é muito conhecida pelas suas singularidades, e talvez a maior delas seja o seu toque de caixa de guerra. Não é exagero dizer que não há nada igual, pois de fato não há. O símbolo perfeito de respeito e reverência ao orixá padroeiro da escola e da bateria, o toque das caixas da Mocidade foi criado por Mestre André seguindo o pedido de Tia Chica, mãe de santo e baiana da escola que deu as cores do pavilhão da verde e branco da Zona Oeste. Surge, então, os batuques baseados no agueré de Oxóssi. Mais um bimestre com nota 10. 
Também é necessário abordar outra singularidade da bateria da Mocidade, que mora fundo em uma das invenções do homenageado. Não é exagero dizer que a ala de chocalhos da Não Existe Mais Quente é uma das mais proeminentes do carnaval carioca. A Chocalho Cascável tem um toque único em suas subidas, que também lhe permitem identificar de longe a chegada da turma de Padre Miguel para a sua “caçada de axé, para caçar, ganhar, enfeitiçar, roubar o coração dos outros”, como bem diz Fábio Fabato, jornalista e biógrafo da Mocidade. E essa característica se relaciona intimamente com a criação dos chocalhos de platinela por Mestre André, em uma época em que era necessário contornar as problemáticas dos poucos ritmistas, com soluções para sua bateria soar mais alto e parecer que 30 componentes são 90. Que 90 são 270. É também nesse contexto que surge a criação das baquetas múltiplas de tamborim. Fechou a conta? O último bimestre acabou. 
Ao fim do nosso ano letivo fictício, é seguro afirmar que com suas aulas, André de fato ressignificou a posição do comandante da bateria para um Mestre, que ensina e cativava com suas aulas. Fugindo do clássico apito, e tendo seus comandados sob a rédea curta com sua clássica batuta, talvez Mestre André seja o grande precursor em fazer uma bateria de escola de samba parecer e se transformar numa orquestra rítmica. Um homem lendário, que a partir de seus gestos e movimentos comanda um grupo que impressiona e conquista o coração daqueles que assistem. 
Ainda, como não falarmos de conquistar os corações daqueles que tiveram o privilégio de testemunhar as apresentações de Mestre André e a Não Existe Mais Quente e não narrar a invenção das paradinhas? O que hoje está inserido no regulamento do quesito Bateria, promovendo uma competição saudável entre os agrupamentos rítmicos de todas as escolas, para encontrar a convenção que vai parar o próximo carnaval e serem recompensados por isso, mora na genialidade de José Pereira da Silva, o Mestre dos Mestres, que se eternizou para sempre como o criador desse momento que cativa e move o público de carnaval a carnaval. 
Capa do LP gravado em 1974 pela Bateria da Mocidade Independente de Padre Miguel, sob a batuta de Mestre André. Gravação essa que dava o holofote para o grupamento rítmico da Mocidade. – Foto: Gravadora Copacabana.
São invenções, influências e revoluções encabeçadas por uma gigantesca figura da Zona Oeste, que explodiu a bolha das quatro grandes escolas de samba da época. A partir de sua bateria, inseriu quase à força a Mocidade Independente de Padre Miguel no mapa de toda a cidade, que antes sabia de cor indicar Portela, Mangueira, Império Serrano e Salgueiro. Como uma vez disse o historiador Sérgio Cabral, o que provocava era o fato de que era de fato a melhor bateria da cidade. Não à toa, por alguns anos, foi conhecida como a bateria que tem uma Escola de Samba. 
Mestre André foi um revolucionário. Quebrou estrutura atrás de estrutura. A estrutura da organização que se dava nas escolas de samba, do destaque das quatro grandes da época, a qual por muito tempo escolhia enxergar apenas do centro da cidade até Madureira. Colocou a Zona Oeste no mapa do Carnaval. Mexeu também na estrutura do comando das baterias das escolas de samba, sendo o primeiro a ser referenciado e reverenciado como mestre de bateria. Ou ainda a estrutura das próprias baterias, introduzindo junto com seus ritmistas e colegas de trabalho, “leis” do funcionamento dessas orquestras rítmicas que são seguidas até hoje. 
O fato é que as baterias não seriam as mesmas não fosse por ele. Assim… o carnaval não seria o mesmo não fosse por ele. O samba não seria o mesmo não fosse por ele. Portanto, o Brasil não seria o mesmo não fosse por ele. O primeiro dos seus.
O mestre dos mestres. 

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