#Colablize: Para quando a eleição e a pandemia passarem: deixem-nos tocar o nosso tamborim!

 

A coluna #ColabLize é um espaço aberto a seguidores do Carnavalize e pesquisadores de carnaval para divulgar seus escritos sobre nossa folia. Quer enviar algum texto que verse sobre a festa? Mande para nós no e-mail contato@carnavalize.com. A #ColabLize vai ao ar quinzenalmente, sempre aos sábados!
Por Fábio Fabato 

Guri ainda – e é de guri que se aprende a senti-lo, antes até de amá-lo – senti que o carnaval trazia indissociável relação com a rua. Era 1989, ano em que o país voltaria às urnas, após mais de duas décadas de sequestro de suas quimeras. Mãos dadas com meu pai, danei de catar confetes entre os arrepiados paralelepípedos da cidade, guardando os pedacinhos de papel nos bolsos. Tinha seis carnavais apenas. Ele sorriu e me perguntou que diabos eu planejava com aquela pitoresca coleta. A resposta foi rápida, sem pensata elaborada, apenas um moleque embebido em festa para fraquejar as bases de um adulto: “estou guardando um pouquinho da rua para sempre comigo”. Ora, o que é sagrado, profano, sincrético, encruza e cruza de África e Portugal, nos encontros e desencontros de nossa agridoce poesia, deu em folia, esta Saturnália brazuca de identidade e economia fortes, que diz tanto de peles e almas. Mas, antes de tudo, o carnaval é um filho (da gema) de uma disputa. 
Não, não a batalha que termina com o sonhado “dez, nota dez”, ou em décimos perdidos na carona do vozeirão de Perlingeiro, no ensopar da quarta derradeira. Ele é fruto, desde os primórdios, das tensões que envolvem a ocupação de espaço público (aquele mesmo onde repousam os confetes coloridos da memória) e da sanha domesticadora das elites. O enlace do Jogo do Bicho com o samba, por exemplo, emerge do conflito na rua e pela rua. Marginalizados, ambos encontraram no abraço sincero ou interesseiro uma forma de sobrevivência à atmosfera de repressão que vinha de cima. Por vezes, partindo para o pau. Noutras, em afagos de mutualismo descarado. Assim, decolaram. 
Ora, as agremiações nasceram, fundamentalmente, em áreas periféricas e, ocupadas por “benfeitores”, se permitiram a relação de troca em meio ao flutuar em cego dos mistérios de existir. Não à toa o porquê de perdurarem, a despeito de titubeios aqui e acolá. Nesse mesmo passo a passo no compasso, a contravenção amealhou moeda-prestígio, garantida em status e cifras.
Mas o papo aqui são os passeios públicos dos confetes e serpentinas, e o quanto o fomento à sua ocupação com festa representa a própria revolução social que não ensinam nos colégios. Bem, escolas de samba ou blocos – grosso modo – trazem a lógica processional católica (sujeitos em cortejo, munidos de alguma espécie de elemento visual icônico – bandeira, estandarte) – mas a música é preta, batuque para o santo, evocando entidades que a África pariu, ou aquelas que nem mesmo conheceu, netas e bisnetas suas nascidas por cá. E é este estado de nudez da cultura popular o ninho para chocar o ódio das oligarquias, com seus donos brancos que demarcaram a terra secularmente sugada, vaca profana de tetas abertas desde a cobiça dos navegantes das primeiras epopeias oceano adentro.
A folia é a própria antítese das capitanias, já que arranca as cercas do chão dividido para poucos donos e permite – delírio por Constituição – irromper regras históricas. E liberdade, ah, a liberdade incomoda pastores, juízes, capitães (do mato), sobretudo, quando vestem as faixas e vidram os olhos. E tome de pedagogia de massa a partir dos aparelhos estatais repressores, voltados à demonização das diferenças e de artistas, estes massacrados como bandidos ideológicos que devem se curvar a instituições, aurea mediocritas da caneta. O poder é preconceituoso, quarado, acaju, fala alto por cima e bica a canela por baixo. 
Fato é que a ânsia por limitar os destinos de carnes pretas não permitiu o conhecimento geral sobre o impacto do investimento público em carnaval. Talvez, sequer saibam a joia rara que manipulam sem lapidar: são quase R$ 4 bi (dados da Riotur) movimentados, anualmente, na cidade. O delírio de virarmos uma Noruega tropical é tangível, justamente, nos famosos quatro dias de Momo – há renda extra, amor livre, os índices de violência diminuem. Um divã coletivo que dialoga com o nosso DNA e no qual processamos – armados de farra, não nos esqueçamos – as questões mais sensíveis para, ufa!, encararmos a dor e delícia de mais 360 rotações. 
Quer flerte maior com a própria visão, vá lá, ocidental de desenvolvimento? E um bem-estar social à brasileira, vejam só!, singularidade do torrão-manancial que insiste em dar de ombros para o seu eu-lírico e miscigenado. Eis, portanto, o grande desafio para quando a próxima eleição e a pandemia passarem: fazer com que os filhos da cultura de rua sejam de fatos reconhecidos na terra que tem cais do Valongo e palmeiras imperiais em convívio. Nossos coletivos batuqueiros não são meros fandangos, mas confidentes históricos do asfalto/morro, espelhos do tempo, papel carbono de sangue e suor. O Rio existe com seu jeitinho peculiar também porque o carnaval existe. Fuzarca-oxigênio mergulhada nos tapas, beijos e negociações que nos conduziram até aqui.
“(…) O Rio toma forma de sambista. É puro carnaval, loucura mansa, a reboar no canto de mil bocas, de dez mil, de trinta mil, de cem mil bocas, no ritual de entrega a um deus amigo, deus veloz que passa e deixa rastro de música no espaço para o resto do ano”. O poeta Drummond, rei da praia de Copacabana e das nossas emoções – sazonalmente alvejado por vândalos ali na orla – sempre teve razão. Estranho seria se o Rio não tirasse do armário a velha fantasia de todo Verão, nem decretasse em todas as direções que o seu melhor estado é o de carnaval. 
Em cada bar, esquina, beco e viela da metrópole-balneário encalorada, os baticuns são convidativos. Mais ainda: imperativos. Somos América austral menina, tupis, bantos, ibéricos, inigualáveis na experimentação de cantar para subir com as dores por intermédio da festa. Seiva, sangue e suor que escorrem de veias abertas, cacos, fractais, flores. E confetes, muitos confetes. Para brincar e até guardar nos bolsos da velha infância…
Enquanto nossos museus inda pegam fogo, que os fluidos subam e se espalhem, despertando do sono o menino adolescente que canta de galo por ser gigante pela própria natureza. Afinal, qual mistério tem a terra desigual que, pesares à parte, goza estrelas enquanto se entorpece de gente na dureza da vida? O carnaval é memória, alforria de corpos e pés de vento, a percussão concede a graça do encontro e da conexão ancestral.
Abram a porta, ouçam o barulho que vem de fora, sintam o poder incendiário da criação livre: deixem-nos tocar o nosso tamborim!

Fábio Fabato é jornalista e escritor. Pesquisador de cultura popular, comenta o carnaval do Rio há 15 anos em rádio, TV e portais especializados sobre a folia. Autor da primeira biografia da escola de samba Mocidade Independente, escreveu algumas sinopses de escolas de samba e também cinco livros, dentre eles, “Pra tudo começar na quinta-feira” (ao lado de Luiz Antonio Simas), obra de referência sobre o quesito enredo.

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