Do Setor 1 à Apoteose: Salgueiro 1989 – Templo negro em tempo de consciência negra

 

Texto: Beatriz Freire, João Vitor Silveira e Thomas Reis
Revisão: Luise Campos
“Do Setor 1 à Apoteose” propõe uma viagem completa por um desfile marcante da história carnavalesca, da concentração à Apoteose, passando por antecedentes, contextos, histórias de bastidores e análise de todos os quesitos. Um verdadeiro cortejo de informações sobre a apresentação escolhida! Durante o mês de setembro, a cada segunda-feira, destrincharemos um desfile eleito pelo público a partir de enquetes realizadas em nosso Instagram (sigam @igcarnavalize) e também no Twitter (@carnavalize). 
Nossa temporada de retomada da série abarca um processo imprescindível de contribuição dos padrinhos e madrinhas que impulsionam o trabalho do Carnavalize. Em nosso terceiro texto, foi a vez de Pedro Ivo Almeida, Pedro Willmersdorf e Helenice Gomes indicarem desfiles para a nossa enquete. Foram eles, respectivamente: Salgueiro 1989 (“Templo negro em tempo de consciência negra”), Porto da Pedra 1997 (“No reino da folia, cada louco com a sua mania”) e Tradição 2001 (“Hoje é domingo, é alegria, vamos sorrir e cantar!”). Agradecemos mais uma vez aos nossos padrinhos e madrinha pela luxuosa contribuição e convidamos todos a conhecerem nosso instrumento de apadrinhamento. 
O centenário não se apagará…
Para o carnaval de 1989, depois de desfiles com resultados de meio-de-tabela e um quarto lugar no desfile anterior, a alvirrubra decidiu levar à Avenida um enredo dedicado ao centenário da abolição da escravatura com a memória construída pelos seus próprios desfiles. A “lembrança tardia” da libertação formal foi justificada pela própria escola na introdução de sua sinopse: 
“Nem melhor, nem pior, apenas uma escola diferente”, essa frase define muito bem o Salgueiro, sempre arrojado e marcante, original e atrevido, verdadeiramente uma escola forte, livre e solta, comprometida com seu tempo e nele pioneira, sempre surpreendente e inovadora, e é assim que a desejamos no carnaval de 1989, livre e soberana em seu estilo, transmitindo liberdade e resistência.
Visão geral do desfile da arquibancada. Reprodução Tantos Carnavais.
Quando todos lembraram do negro em 1988, nós do Salgueiro só o faremos em 1989, não apenas por sermos diferentes, também porque nos parece que o movimento negro, a luta negra não se finda em 88, ela é maior que o centenário dessa dita liberdade, dessa falsa abolição. É importante que essa chama não se apague e que no 101º, 102º, 103º ano da libertação dos escravos ainda se proclame igualdade entre negros, mulatos e brancos.
Por isso dizemos que o Salgueiro é atrevido, arrojado e diferente, pois quando essa chama de luta começar a arrefecer nós a avivaremos, a reacenderemos com nosso evoluir, cantar e dançar (…)”. 

Eu sou negro sim, liberdade e poesia/E na atual sociedade, lutamos pela igualdade
O carnavalesco Luiz Fernando Reis, que até então havia se consolidado na Caprichosos de Pilares com os enredos irreverentes e críticos, chegou à Academia do Samba com a missão de resgatar a identidade da escola que foi se perdendo ao longo da década de 1980. O resgate não teria como ser diferente: após deixar o centenário da abolição da escravatura passar batido no ano anterior, a agremiação foi ao encontro da essência em suas raízes negras com o enredo que exaltava a negritude por meio de uma homenagem aos, até ali, nove enredos com a temática “afro” apresentados pela vermelho e branco.
A abertura da apresentação salgueirense. Reprodução: Tantos Carnavais.
A abertura do enredo é dada por um enaltecimento da negritude salgueirense, partindo para uma viagem temporal ao seu próprio passado no qual se tornou referência e revolucionou as narrativas carnavalescas. Afinal, a escola passou a dar centralidade aos personagens negros marginalizados na história dita “oficial” (Alô, Mangueira!), valorizando a cultura afro-brasileira fundamental para a construção do nosso país e que passa por um constante negacionismo. Percorre, então, por entre os carnavais Navio Negreiro” – 1957, “Quilombo dos Palmares” – 1960, “Xica da Silva” – 1963, “Chico-Rei” – 1964, “Bahia de todos os deuses” – 1969, “Festa para um rei negro” – 1971, “Valongo” – 1975, “Do Yorubá à luz, a aurora dos deuses” – 1978 e “O bailar dos ventos. Relampejou, mas não choveu” – 1980.
Em consonância com os carnavais anteriores, que ditaram o fio narrativo daquele desfile, o carnavalesco, sem perder sua essência crítica, levantava a reflexão sobre os 100 anos de abolição – advinda de uma luta constante travada pelos negros e não um presente de uma princesa “redentora” – em um país alicerçado sobre a égide do preconceito racial e a crença em uma (inexistente, vale ressaltar) democracia entre etnias. Para isso, ao longo do cortejo, se viu a celebração de personagens como: Zumbi dos Palmares, Anastácia, João Cândido, Chico Rei e Martin Luther King, além de personagens rememorados pelo próprio Salgueiro.
No setor dedicado aos orixás, o Xangô do Salgueiro foi o destaque da alegoria representando o orixá. Foto: Revista Manchete. 
Longe das coreografias com passos definidos e complexidade de dança, o Salgueiro veio com uma comissão de frente tradicional. Acompanhados na abertura do desfile por Elizabeth Nunes, ex-presidente da escola, os integrantes da velha guarda apresentaram a agremiação como os verdadeiros guardiões do Templo Negro salgueirense, representando os guerreiros bantos. 
Como a própria sinopse do enredo já anunciava, referenciada por Martin Luther King, “Black is beautiful – “Negro é belo”, e essa frase nos inspirará (…) negro não só é belo, mas também é rico, pomposo, forte, exuberante e fundamentalmente livre, e é nessa riqueza, nessa beleza e nessa liberdade que abordaremos nosso enredo.”. E foi o que aconteceu. Com seus mais de 5000 componentes, a escola tomou a Avenida, tingindo-a de vermelho e branco. 
Que santuário de beleza/Um congresso de nobreza de raríssimo esplendor
O conjunto de fantasias concebido pelo figurinista Flávio Tavares impressionou a todos! Repleto de plumas em tons fortes de vermelho e preto, com o equilíbrio em branco e amarelo, a escola mostrou bom gosto e muito luxo. Apesar da exuberância dos chapéus e costeiros, as fantasias eram leves, sem muito pano, facilitando a evolução dos componentes que pulsavam junto com a bateria. A “ala do Minueto” prendeu as atenções. Composta por jovens casais, saudava o memorável cortejo ocorrido em “Xica da Silva”, no ano de 1963, no qual o grupo coreografado por Mercedes Baptista tomava a Presidente Vargas. 
A escola levou para seu desfile duas alas de baianas. A primeira – “Ala das Baianas do Bonfim” – antecipava a alegoria que fazia referência ao carnaval de 1969, “Bahia de todos os deuses”, em tons claros, mesclando brancos com detalhes prateados, acompanhando as cores da alegoria, o que proporcionou uma imagem fascinante com aquele conjunto todo em branco. Já a segunda, “Elegância Negra”, encantadora! Com a indumentária também em tons claros, mas com muitos detalhes em preto, dourado e vermelho, sobretudo na cabeça, a ala fascinou quem assistia o desfile e conquistou o Estandarte de Ouro.  
A bela ala de baianas no desfile. Foto: Sebastião Marinho (O Globo)
As alegorias não ficaram aquém de toda essa riqueza da alvirrubra. O conjunto imponente e bem explorado conseguiu dar uma boa forma ao enredo. O abre-alas “Templo Negro” era robusto e com duas grandes panteras – simbolo da luta e coragem negra – levava o nome da agremiação em vermelho, abrindo os caminhos na passarela. O segundo carro, “Navio Negreiro” simbolizava o início da saga dos povos escravizados. “Portais de Palmares”, o terceiro, celebrava o líder quilombola que vinha representado pelo ator Antonio Pitanga. Mas foi a quinta alegoria que mais fascinou por sua estética. Como já mencionado anteriormente, ela referenciava o enredo “Bahia de todos os deuses”. Totalmente branca com detalhes prateados, ela se destacou em meio ao volumoso conjunto de dez alegorias. 
Nesse quilombo tem magia
A escola não estava para brincadeira: como se não bastasse o corpulento conjunto alegórico e as encantadoras fantasias, levou também dez tripés para a Sapucaí. Destes, seis louvavam os orixás Exu, Iansã, Ogum, Oxóssi, Oxumaré, Oxum e Oxalá. 
Um euforia tomou conta das alas, que verdadeiramente quicavam pela pista, com muita animação. Os componentes deram um show de harmonia e contagiaram o público cantando, pulando e sambando no amanhecer daquele 6 de fevereiro de 1989.  Era o Salgueiro em sua melhor versão: branco e vermelho, afro, rasgando o chão da Sapucaí. 
 Élcio PV e Dóris defendendo o pavilhão vermelho e branco em 1989. Foto: O Globo.
“Espero ter tido a felicidade de ter levantado a nota máxima para a família salgueirense. E para a minha vaidade também, não é?!”, disse Dóris, em entrevista ao final do desfile, já na Apoteose. Seu mestre-sala era ninguém menos que o lendário Élcio PV, com quem também era casada, que retornava ao Salgueiro, desta vez com a amada como porta-bandeira, depois de anos em que os dois gabaritaram o quesito pela Beija-Flor de Nilópolis. A vaidade própria, como ela mesma apontou, tinha razão de existir: em cima de saltos altíssimos, ela bailava cheia de si – porque era mesmo brilhante – ao lado de Élcio, formando uma dupla de sucesso e resultados invejáveis. Na apresentação, trajados em vermelho e ele com o machado de Xangô como adereço em uma das mãos, bailaram com a cumplicidade que transcendia o matrimônio e encantava a todos. 
Ô Zaziê, Ô Zaziá/Salgueiro é Maiongolê, Marangolá!

É impossível fazer uma lista dos grandes sambas da Academia e não incluir a grande obra que foi para a Avenida no ano de 1989. E também é impossível falar sobre o samba de 1989 sem falar sobre a condução de manual do Pavarotti do Samba, Antônio Ricardo de Souza, o Rixxah. E nada melhor que as palavras do próprio intérprete, que conversou com a gente para falarmos sobre aquele ano, começando pela sua visão do samba em questão: 
“Naquele ano, o samba que ganhou foi o melhor da disputa. Havia outros grandes sambas, como sempre, já que a Ala de Compositores do Salgueiro sempre foi uma verdadeira seleção de bambas. Mas eu fiquei muito satisfeito com a escolha do samba, pois era o melhor. A cara do Salgueiro, bonito, melodioso, do jeito que eu gosto.” 
A alegoria que lembrou “Chico Rei”. Reprodução: Tantos Carnavais.
E o gosto de Rixxah ficou nítido pelo seu desempenho. O samba de Alaor Macedo, Helinho do Salgueiro, Arizão, Demá Chagas e Rubinho do Afro tinha trechos muito poéticos e melódicos, em que a característica do canto do intérprete ficava ainda mais evidente. Um exemplo disso é o trecho final da segunda parte do samba. E, além do mais, a obra contava com um refrão de meio cativante e histórico, que ficou marcado na cabeça dos componentes e dos amantes do Carnaval:
“Ô Zaziê, Ô Zaziá
Ô Zaziê, Maiongolê, Marangolá
Ô Zaziê, Ô Zaziá
Salgueiro é Maiongolê, Marangolá”
O trecho em iorubá-nagô seria a maneira como Xangô faz um clamor aos céus, pedindo para que eles se abram em bênçãos para recepcionar Oxalá. A partir desse inesquecível refrão e da qualidade do samba como um todo, a condução de Rixxah foi ainda mais valorizada, tanto que o desfile lhe rendeu seu primeiro Estandarte de Ouro como intérprete. Ele falou um pouco mais sobre a importância do desfile e daquele enredo: 
“Aquele carnaval teve muita importância para mim. Foi quando consegui ganhar meu primeiro Estandarte de Ouro como intérprete. E era um enredo bonito e importante. O carnaval sempre foi e sempre será importante, porque retrata e valoriza a luta do meu povo. Salve a África! Salve a Bahia! E Vidas Negras Importam! Axé!” 
E para exaltar ainda mais o samba do Salgueiro, nada melhor que o belíssimo ritmo proporcionado pela Bateria Furiosa. Sob o comando do saudoso Mestre Louro, a Furiosa pisou com força na Avenida, com uma fantasia que representando guerreiros africanos. Ela deu a cadência perfeita para que a bonita obra do Salgueiro pudesse brilhar e conquistou a nota máxima dos jurados. Na regência de seu lendário mestre, o destaque do trabalho da bateria foi o belo e criativo desenho realizado pelos tamborins ao longo do famoso refrão de meio do samba. 
Ainda que tenha realizado um belo desfile já na manhã do domingo, o Salgueiro não conseguiu chegar ao título. Apesar do apuro estético e o bom desempenho apresentado pelos quesitos na Avenida, naquela quarta-feira de cinzas, os holofotes estavam direcionados para longe da Grande Tijuca, de forma que as vizinhas Salgueiro e Vila Isabel acabaram sendo ofuscadas pelos desfiles históricos e arrebatadores de Imperatriz Leopoldinense e Beija-Flor de Nilópolis. Ao final da apuração, o Salgueiro acabou empatado com a Vila Isabel com 207 pontos, ficando com a quinta colocação e voltando para o Desfile das Campeãs. 
Ainda que não tenha conquistado o campeonato ou mesmo se confortado com a segunda colocação, o carnaval de 1989 não passa batido pela memória de desfiles e feitos da escola. Além de ter produzido um dos sempre entoados sambas da grande safra que comporta a discografia salgueirense, ganhou-se um desfile politicamente alinhado aos acontecimentos do mundo, em um tempo no qual se discutia os efeitos da abolição formal e de redemocratização, com a vigência da nova Constituição. Além disso, inegável é o sentimento de pertencimento que trazem os versos do samba que, ainda hoje, fazem da Silva Teles um templo negro.

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