#GiroAncestral: simplificando os manuais e o julgamento do casal de mestre-sala e porta-bandeira

por Beatriz Freire e Juliana Yamamoto
Revisão: Leonardo Antan e Felipe Tinoco
Arte: Vitor Melo
Com o calendário inicial da nossa série #GiroAncestral planejado para quatro semanas seguidas ao longo do mês de junho, escolhemos encerrar nosso breve ensaio sobre a arte do casal de mestre-sala e porta-bandeira com o presente texto, um resumo simplificado sobre os manuais e análises de julgamentos dos casais do Rio de Janeiro e de São Paulo. 
Para falar sobre a boa recepção da série, além de agradecer a todos que leem semanalmente nossas produções, anunciamos um texto extra para a próxima semana, ainda quarta-feira, para fechar com chave de ouro. Agora, é chegado o momento de falarmos mais um pouco sobre os elementos que envolvem a avaliação de cada um dos casais.
Análise de julgamento: Rio de Janeiro
No Rio de Janeiro, os jurados são guiados por um manual sucinto e sem grandes restrições. Pouco aprofundado, ele abre brechas para considerações dos julgadores que estão revestidas de maior grau de subjetividade do que aqueles que já são intrínsecos ao exercício do julgamento, por mais que disponham e estejam submetidos ao uso de parâmetros para fazerem suas considerações e atribuições de notas. Assim, sem engessamento e inflexível rigor, muitas vezes os jurados acabam criando costumes que servem como diretrizes não explícitas em texto, mas extraídos do gosto desses profissionais, seja no modo de vestir e até mesmo de bailar. 
Cintya e Rodrigo, o casal da Porto da Pedra, no desfile de 2019, com vestes majestosas, ao gosto do júri. Foto: Juliana Dias/SRZD.
Aliás, o primeiro ponto disposto no instrumento de avaliação é a indumentária dos defensores da escola, atendendo a adequação à dança, formas e acabamentos que imprimam beleza e bom gosto. Não é raro que se encontre referências que digam que o casal, independentemente do enredo, deve se adequar ao visual de nobreza da narrativa que se conta, sem que se deixe de lado a ideia de que eles são, por natureza, figuras majestosas. Hoje, por exemplo, é difícil pensar em uma fantasia de casal de mestre-sala e porta-bandeira que será unanimemente recepcionada com bons olhos pelo júri sem ter os elementos que eles entendem que atribuem riqueza e identidade opulenta ao visual, como muitas penas dos mais variados tipos em saias e costeiros, imprimindo uma estética um tanto quanto hegemônica ao visual do quesito. 
No nosso primeiro texto, discorremos sobre o ponto do casal em qualquer momento não poder sambar, tendo como dever, na verdade, bailar ao ritmo do samba, o que compõe uma das diretrizes técnicas de avaliação dispostas no manual. A execução de passos característicos da dança é obrigatória, com “meneios, mesuras, giros, meias-voltas e torneados, sendo obrigatória a sua exibição diante dos módulos de julgamento”, como dispõe o livro. Não será mera coincidência encontrar muitos pontos aqui relacionados a assuntos dos quais já tratamos anteriormente nos três textos produzidos na série. Todos os elementos técnicos e de visual exigem treino, preparo e um pensamento planejado e cuidadoso dos casais para que formem um trabalho homogêneo e de boa impressão ao aliar todos os pontos elencados, um a um.
Raphaela Caboclo e Feliciano Júnior, em 2017, no Império Serrano, substituíram as tradicionais penas por capim barba de bode. Foto: Jeanine Gall/SRZD.
Prosseguindo, deve-se notar, ainda, a harmonia entre o casal, envolvendo diretamente os papéis do mestre-sala de cortejar e defender, além de apresentar, seu pavilhão e também a sua dama, que por sua vez conduzirá e apresentará sua bandeira sempre desfraldada, sendo considerado um erro que ela se enrole em seu próprio eixo, sem nunca deixá-la sob a responsabilidade do mestre-sala. Além de erros técnicos, de entrosamento, conceito visual e execução que possam surgir, o manual carioca autoriza os jurados a despontuarem eventuais perdas ou quedas de itens que compõem a indumentária, como sapatos, costeiros, chapéus, penas, etc.
No último carnaval, em uma análise direta da justificativa, a maior incidência de decréscimo nas notas se deu em virtude da famosa teatralização. Teatralizar, para ser mais exata, é quando o casal incorpora à dança uma considerável quantidade de elementos e referências que compõem a caracterização dos papéis que estão representando narrativamente dentro do enredo, muitas vezes usando a seu serviço a letra do samba como base. Registre-se, porém, que marcar a coreografia seguindo os versos do samba-enredo nem sempre vai caracterizar a tal teatralização. Fato é que a investidura do mestre-sala e porta-bandeira nesses personagens em doses pouco moderadas acabam escanteando o pavilhão, que é, por direito, a estrela principal da apresentação de um casal. Por isso, os jurados constantemente fazem o alerta de que representar é diferente de teatralizar, e que movimentos que sugiram as referências ao que se propõe dentro do enredo são mais do que bem-vindas, desde que não ofusquem a dança que exalta a própria bandeira e o seu simbolismo ou que façam os defensores esquecerem por algum momento que são guardiões deste tal símbolo, não atores.
Marcella Alves e Sidclei, defensores do Salgueiro neste ano, representam personagens sem ofuscarem o pavilhão. Foto: Gabriel Nascimento/Riotur.
A coreografia da arte, inclusive, é um ponto controverso do desenvolvimento do casal ao passar dos anos. A dança solta, tradicional, que conta com o jogo da imprevisibilidade e da combinação quase ao acaso dos corpos em movimentos, didatizados e acostumados um ao outro pela técnica e, principalmente, pela sintonia, não é mais vista com bons olhos como em outrora. Há de se convencionar, portanto, que é preciso ter um roteiro daquela dança, que é exaustivamente pensada e ensaiada para ser brilhantemente executada diante do júri. E tal apresentação, na visão dos julgadores, precisa ser pensada também do ponto de vista da ocupação física; o uso pouco explorado do chão da passarela como espaço cênico para desenvolvimento dos mais diversos desenhos coreográficos (círculos, diagonais, etc) é um ponto que vira uma constante repetição de alerta dos jurados em suas justificativas. Não basta dançar bonito, há de se exercitar a criatividade do bailado em seus mais diversos sentidos.
Análise de Julgamento: São Paulo
Desembarcando agora na Terra da Garoa, o quesito por lá possui um manual completo e detalhado. O casal precisa evoluir e realizar seu bailado por toda pista e o jurado deverá observá-los durante todo o campo de visão da sua cabine, não apenas quando passam à sua frente. Presente no “módulo dança”, há 3 pontos de avaliação técnica para o julgamento do quesito. O primeiro deles é o entrosamento. Nele, o jurado deverá avaliar a dança de mestre-sala e porta-bandeira considerando os seguintes pontos:
Integração do casal e seus movimentos obrigatórios: apresentar todos os movimentos presentes na dança de mestre-sala e porta-bandeira. A dama deverá realizar giros completos em 360 graus horário e anti-horário e giros no próprio eixo, enquanto o mestre-sala deverá realizar a meia-volta (giros 180 graus ao redor da sua dama, em sentido horário e sentido anti-horário – movimento de proteção), riscado (trabalho de pernas), torneados (giro em torno do próprio eixo), mesuras (menção de reverência) e meneio (a forma de conduzir sua parceira). Não pode-se também esquecer da principal função de um casal, que é a apresentação do pavilhão. Além disso, precisam realizar o minueto (dança de passos miúdos), caracterizada pela delicadeza dos movimentos e a execução dos giros e reverências um para o outro.
Uilian Cesario e Karina Zamparolli em desfile oficial da Mocidade Alegre. O casal foi nota 30 em 2020. Foto: Luciano Garcia/Faixa Amarela.
Durante a apresentação aos jurados, na qual a realização dos movimentos é obrigatória, há outros pontos que são levados em conta durante a evolução do casal. Enquanto executa seu bailado, o mestre-sala não poderá deixar o pavilhão bater em seu corpo, assim como não deve existir choque corporal com a sua dama e nem ele deve realizar o bailado de forma individual, tornando sua parceira e o seu pavilhão como meros coadjuvantes. Os mesmos também não podem verbalizar durante a dança. A falta de elegância, simpatia e leveza da dupla durante o bailado também é muito importante e passível de perda de décimos. No último carnaval, também foi integrado um novo tópico de avaliação em entrosamento: finalização de movimentos. O casal deverá apresentar a finalização dos movimentos na dança, evidenciando e destacando ainda mais a sincronia entre os dois.
O segundo ponto de avaliação técnica é a postura do casal. Nele, avalia-se a forma de conduzir e apresentar o pavilhão com altivez, simpatia e elegância. Para isso, a porta-bandeira precisa manter o pavilhão desfraldado (aberto) em seus giros, não poderá deixá-lo enrolar no seu corpo ou no próprio mastro e a mesma também não poderá se curvar a qualquer pessoa durante sua dança, já que ostenta o símbolo maior de uma escola de samba. O mestre-sala não poderá tocar o pavilhão de forma brusca, nem encostar seu joelho no chão. Os dois em hipótese alguma podem cair durante a apresentação e o cavalheiro também não pode executar movimentos que não são direcionados ao pavilhão e à sua dama, nem dar as costas para a mesma, exceto quando estiver realizando giros no seu próprio eixo (torneados). 
O terceiro e último ponto de avaliação técnica do quesito é a integridade das fantasias. O jurado deverá verificar a indumentária do casal de mestre-sala e porta-bandeira e observar se existem tecidos rasgados, adereços quebrados, saiotes arqueados e queda ou perda de parte da fantasia, mesmo que seja acidental, como costeiros e chapéus, por exemplo. 
Marcelo e Adriana, primeiro casal da Mancha Verde, gabaritaram o quesito em 2020. Foto: Luciano Garcia/Faixa Amarela.
Como já citado anteriormente, o manual do quesito é didático – não só para os julgadores, mas também para o público em geral. Para atribuição da nota ao casal, os erros cometidos durante a apresentação são divididos em quatro tipo de falhas: leve (1 ponto de ocorrência – 0,1); média (2 pontos de ocorrência – 0,2); grave (3 pontos de ocorrência – 0,3) e gravíssimo (4 pontos de ocorrência – 0,4). No manual, as possíveis falhas em cada ponto de avaliação técnica (entrosamento, postura de casal e integridade das fantasias) já são separados em leve, médio, grave e gravíssimo. Um casal que se comunicar verbalmente durante sua apresentação e tiverem problemas na finalização de movimentos estão realizando falhas de nível leve e perderão 0,1 por cada erro, por exemplo. Se durante o bailado o pavilhão não se manteve desfraldado, é considerada  uma falha de nível médio, e o casal em questão terá o desconto de 2 décimos.
No carnaval de 2020, a maior perda de décimos entre os  casais de mestre-sala e porta-bandeira foi no ponto de avaliação entrosamento: finalização de movimentos, considerado como erro leve. Os jurados enxergaram que houve falhas de entrosamento entre os casais, em que, ao finalizarem algum passo, o mestres-salas pararam antes das suas parceiras ou vice-versa, dando a sensação que não estavam sincronizados. Outro fato que também pode ocorrer é quando, ao terminar algum movimento, a finalização dos bailantes não era evidente e marcada. Um outro ponto também apontado pelos jurados, mas em menor escala em suas justificativas, foi a postura do casal – pavilhão desfraldado, quando a dançarina não consegue manter o pavilhão aberto todo o tempo. 
Paralelo entre as cidades
Essa fascinante arte que se mantém a cada ano e é perpetuada para novas gerações possui tradicionalidade e importância no carnaval. Tanto em São Paulo quanto no Rio de Janeiro, os casais realizam a mesma dança, apresentando os seus movimentos obrigatórios, exercendo sua principal função e atribuindo o destaque ao maior símbolo de uma escola. Cada casal tem seu estilo de dança, seja tradicional ou moderno, com um bailado forte ou leve, mas todos precisam apresentar o que a arte propõe. Entretanto, o quesito possui suas peculiaridades em São Paulo e no Rio de Janeiro.
João Carlos e Ana Reis, primeiro casal do Águia de Ouro, campeã do carnaval 2020. Foto: Luciano Garcia/Faixa Amarela.
Na Marquês de Sapucaí, os casais de mestre-sala e porta-bandeira realizam sua apresentação em frente ao módulo de jurados, enquanto em São Paulo os dançarinos precisam evoluir por toda pista e são avaliados de maneira contínua. A própria cabine no Sambódromo do Anhembi é feita para que o jurado do quesito consiga ter uma visão ampla do casal. Em relação ao bailado, não há muitas diferenças entre as duas cidades, já que os principais movimentos são obrigatórios em ambas. Entretanto, enquanto os casais cariocas montam uma coreografia específica que será realizada em um espaço determinado em frente ao módulo julgador e durante uma passada do samba-enredo, os casais paulistanos possuem uma coreografia para evoluir por toda a pista, sendo movimentos constantes. Um fato curioso é que no Rio a porta-bandeira pode se curvar durante a apresentação, em forma de reverência e respeito ao grande símbolo que ostenta. Já em São Paulo, isso é proibido e, caso alguma porta-bandeira realize esse movimento, uma falha é considerada.
Apesar do manual do quesito da cidade carioca ser mais simples do que o paulista, os jurados são trabalhados para expandir sua análise acerca da dança do casal e ir além do que está descrito no manual, que não é descritivo. Além disso, são guiados a expressarem suas opiniões nas justificativas. Por estarem há muito tempo na função, isso contribui para se aprofundarem e entenderem ainda mais o quesito. Já no carnaval de São Paulo, apesar do manual ser completo e detalhado, falta uma melhor orientação aos jurados no que se refere ao julgamento, pois há pontos para avaliação que envolvem a subjetividade, como elegância, postura e leveza de um bailado. Os mesmos necessitam de uma melhor referência e conhecimento para poder discernir o que é um bailado elegante ou não e também ter a possibilidade de ampliar sua análise além do manual, pois, caso contrário, acaba se tornando uma avaliação engessada e mecânica, principalmente no que tange às justificativas, nas quais os jurados não exprimem suas opiniões.
Ruhanan Pontes e Ana Paula em desfile oficial pela Colorado do Brás em 2020. Foto: Luciano Garcia /Faixa Amarela.
Os casais de mestre-sala e porta-bandeira possuem uma grande importância dentro de uma escola de samba e, principalmente, dentro de um desfile. Apenas duas pessoas representam um único quesito. Além de encantar o público com seu bailado, também precisam levar essa magia para os jurados. No Rio de Janeiro e em São Paulo, o julgamento do quesito preza pela tradicionalidade da dança. Mesmo com a singularidade de cada cidade, é preciso compreender que a arte é uma só e que os casais estão constantemente na busca pela nota máxima. 
E você, conseguiu entender um pouco mais como funciona um julgamento de mestre-sala e porta-bandeira? Seria um bom jurado? Fique com a gente e carnavalize conosco. Semana que vem voltamos para o último capítulo dessa primeira temporada da série #GiroAncestral! 

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