Processos da criação: Jorge Caribé – A resiliência artística no acesso carioca

Por Redação Carnavalize
Após entrevistar
o carnavalesco Leandro Viera, da Estação Primeira de Mangueira, e após
entrevistar João Vitor Araújo, da Unidos de Padre Miguel, o Carnavalize
continuidade a essa temporada da série Processos da Criação com Jorge Caribé.
Caribé assinará
pelo segundo ano consecutivo o carnaval do Império da Tijuca. Com uma vasta
experiência nos desfiles das escolas de samba em diversos grupos e cidades, o
carnavalesco é popularmente conhecido por sua capacidade de reaproveitamento de
materiais e sua associação aos temas “afro”!
Então se liga aí
e leia a conversa que a gente bateu com o carnavalesco no barracão do Império sobre seus caminhos e escolhas de concepção carnavalesca!
Carnavalize: Como
você vê a questão da reciclagem no carnaval? Como é o processo criativo em cima
dessas obras já finalizadas que chegam até você?
Jorge Caribé: Minha inspiração
vem da minha religião. Minha fé e minha crença vêm dos meus orixás. Sou nascido
e criado dentro do candomblé; pode acontecer o que for, eu vou morrer com eles.
Minha formação vem daí porque no candomblé tradicional, do qual eu faço parte,
que não é esse candomblé inventivo de hoje, eu sou filho carnal de um pai de
santo. Então desde criança eu vi costura de roupas, as coroas, a bordagem – antigamente
não tinha coroa – e tive a sorte de meu pai ter sido o primeiro destaque
masculino da Unidos de Vila Isabel. Meu pai desfilou de 1976 até 1988, então
cresci o vendo fazer fantasia. Ele tinha uma ala chamada “chamego do painho”.
Eu saía da escola correndo e ficava louco vendo aquele monte de mulheres
costurando e colando, então já tinha essa vontade. Resumo: comecei a desfilar
na Unidos de Vila Isabel também, no carnaval de 1980, e nunca mais parei, fui
até 2002. Eu fui comissão de frente mirim, destaque de chão, depois fui para
ala, virei presidente de ala, fui composição, destaque, carnavalesco no
carnaval de 2001…. Enfim, minha formação vem de dentro de casa com essa
história da Unidos de Vila Isabel. Eu sempre quis virar carnavalesco, então
para responder a essa pergunta…
C: Vamos aproveitar então o
gancho dessa história antes que você responda. Como foi essa transição de
folião a carnavalesco e esse universo visual já que você cresceu dentro de um
terreiro?
JC: Eu já lidava com os lamês,
com os panos das roupas dos santos, não tinha aljofre – se chamava strass
japonês –, a gente enfiava canutilho, bolinha e miçanga um a um, esse foi meu
início, meu “pré-carnaval”. Com essa história da ala do meu pai e da fantasia
dele sendo feita dentro de casa, eu já lidava com esse universo desde os 9
anos, colando, fazendo pingentinho…

“É uma coisa que me dá prazer falar do negro, da cultura negra, religião de matriz africana, fé, orixá e alma do negro” 


C: Quando você chega ao posto de
carnavalesco você já traz essa questão africana. Os enredos afro permeiam sua
carreira inteira e você já fez dos mais diversos tipos…
JC: É isso aí, porque na verdade
eu tive a sorte de poder frequentar o barracão da Unidos de Vila Isabel. Eu era
um componente bem doente de carnaval e não faltava a nada na Vila e passei a ir
para o barracão olhar. O carnavalesco que me deu a oportunidade, na época, foi
Max (Lopes). Ele teve uma amizade com meu pai muito particular; quem desenhava
para o Max era o Mauro Quintaes, então iam para casa do meu pai jantar e na
mesa desenhavam o que meu pai queria, porque ele sempre vinha no abre-alas, e
aí eu passei a ver o que era carnaval ao vivo. Ia para lá (barracão) ajudar a
fazer florzinha de lisolene e tudo mais. Max também me deu todas as
oportunidades. Depois teve Jorge Freitas, que hoje é o rei de São Paulo, também
foi muito meu amigo e fez três carnavais pela Unidos de Vila Isabel que foram
muito bacanas. Também tive a oportunidade de trabalhar para o Oswaldo Jardim,
que era um mestre…. Enfim, com tudo isso eu consegui uma prática
involuntariamente com aqueles momentos em que se fazia carnavais deslumbrantes.
Quando eu decidi e disse “agora
eu vou”, por coincidência, quase todos os enredos que eu desenvolvi, sendo meus
ou não, levavam para temática negra. Eu estreei na Lins Imperial, no carnaval
do ano 2000. Quando eu cheguei na escola, a presidente me perguntou se eu tinha
alguma proposta e eu respondi: “um monte” (risos), já tinha mais de cinquenta
ideias de enredos na minha cabeça. E ela me disse que a escola tinha uma dívida
de gratidão com o Pai Santana, que foi o primeiro massagista negro do Vasco da Gama
e rei congá do carnaval. Acabei traçando um enredo sobre a história dele e a
viagem ao Egito e fiz um carnaval em um ano difícil, em que caíam quatro
agremiações, e ficamos em terceiro lugar. Fiquei na Lins Imperial cinco anos
seguidos, depois voltei e fiz mais um ano. Ali passei por Clara Nunes, falei
sobre o cucumbi, até que fomos campeões com Aroldo Melodia. Subi a Lins e fiz
uma homenagem aos 75 anos da Mangueira, então já estava bem delineado o meu
tipo de carnaval, que era homenagear o negro. De lá para cá, passando por
diversas escolas, além de ter sido campeão com a Lins, ganhei com a Inocentes
de Belford Roxo, Arranco, Curicica, Em Cima da Hora e sempre falando de negros
e orixás das mais diversas formas. Quando cheguei na Portela (para o carnaval
de 2009), foi um marco na minha vida e falei sobre o amor, tudo baseado em
Oxum. No ano seguinte fiz “Mangueira é Música do Brasil” e veio toda a parte
negra musical. Aí, retornei e vim para União de Jacarepaguá de novo com negros,
plantas e folhas. Fui para a Renascer…. Não precisa nem lembrar, né? Fiz
Candeia sem um centavo, sem qualquer metro de pano novo. Foi muito difícil, mas
me valorizou porque eu sabia que podia fazer. Agora estou aqui. Com meu
trabalho fiquei seis anos fazendo carnaval na Argentina e desenvolvi carnavais
maravilhosos; não foram mais porque acabou. Fui pra Vitória também. Cheguei em
Vitória, fiz Angola e fui campeão. É uma coisa que me dá prazer falar do negro, da cultura negra, religião
de matriz africana, fé, orixá e alma do negro
; estou aqui por causa
disso, fazendo esse enredo porque tem negro.
Em 2018, Caribé assinou “Olubajé, um banquete para o rei” junto a Sandro Gomes no mesmo Império da Tijuca
C: E como funciona o processo de
pesquisa para achar esses temas? Quais são as origens?
JC: Quando está falando sobre
orixás e religião eu tenho, particularmente, um conhecimento bem grande porque
vivo isso todo dia por causa da minha religião. Além de carnavalesco, eu sou
babalorixá, tenho uma casa de candomblé com quatrocentos filhos de santo. Eu
vejo todo dia Iansã, Ogum, Iemanjá, Xangô, Omolum, nem preciso pesquisar.
Quando o enredo é temático, como o desse ano, a gente tem que cair para dentro
(da pesquisa). Aqui tive a sorte de já ter feito em 2013, na União de
Jacarepaguá, um enredo sobre Vassouras. A ideia é a mesma mas não custa dar uma
lida, alguém sempre dá uma ideia nova e vamos ao lugar, muda-se alguma coisa,
mas não encontrei muita dificuldade. No Especial é outro universo: você tem
gente para ler, gente para escrever, desenhar…. É gente para tudo. Eu não sou
medroso, não sou inseguro, nunca tive muita dificuldade. Não tenho isso de
botar um boneco em algum lugar e depois mudar para outro; se é ali que eu
quero, assim será e lá permanecerá. São 19 anos, esse é o meu vigésimo desfile,
e houve anos em que assinei três carnavais, então acho que já tenho noção e
experiência de barracão. E o principal: ao invés de ir melhorando, só piora a
cada ano que passa, então lá atrás eu achei que quando chegasse ao Especial ia
me acabar. Quando cheguei não pude fazer tudo, fiz o carnaval com o que tinha.
Fui pra Mangueira e o presidente me deu dois contêineres com um monte de coisa
do Japão. Quando falam comigo sobre crise e reaproveitamento não é novidade
porque sempre tem crise. Quando tem, a gente faz, e quando não tem, a gente faz
também. A sorte é você estar numa escola e poder fazer uma escultura, um
complemento…. Vem mulher, vira home. Vem cavalo, vira unicórnio. Você
transforma tudo, muda de cor, troca rosto, isso é reciclagem. Eu me preocupo
com isso tudo porque se você pensar na quantidade de escolas de samba que
existem e se todas elas pegam isso tudo e jogam fora, o planeta vai acabar. Toda vez que eu pego um tecido
ou um boneco para ser reaproveitado, eu estou contribuindo para o meu país. A
reciclagem faz parte do carnaval e eu acho que todos os carnavalescos fazem
,
inclusive os do Grupo Especial. Não sei se eles vão assumir, mas todo mundo
recicla. Eu não tenho medo de falar disso, eu reaproveito, sim, acho que é
muito mais difícil do que fazer uma escultura nova. Antes, a gente ia na casa
do irmão rico lá na Cidade do Samba e eles abriam as portas; agora, tem que
pagar, já vem tudo com precinho. Agora é irmão pobre e irmão miserável. É muito
mais gostoso você dar uma cara nova a algo que já vem pronto e as pessoas se
surpreenderem com a transformação.
C: Nesse processo de reciclagem,
você já olha o desfile de algumas escolas pensando nos determinados materiais
que podem ser bons para reaproveitar?
JC: Não funciona bem assim. Como
todo carnavalesco e todo sambista a gente olha e diz: “ah, queria ter uma
escultura dessa”. Quando acaba o carnaval, todo mundo fica em um tédio que
quase vira depressão. Aí você faz o quê? Vai ver vídeo no YouTube. Você não
quer ver Sessão da Tarde, não quer ver Globo, não quer ver Corujão, então dana
a ver desfile até cansar. Geralmente as escolas já têm uma amizade, uma
parceria com A ou B. Se uma escola resolve falar do circo e tem palhaço, tem
foca e mais não sei o quê, você já sabe que aquilo tem em tal lugar. Se me
perguntam, eu digo: “olha, nosso enredo é cavalo alado. Não tem, mas você pega
aquelas zebras ou burros que a gente faz virar” e começa a nossa matemática. Depois
a gente vai às compras. Quando vai em alguma escola que não é parceira, a gente
vai e tenta pechinchar para tentar pegar também. O que acontece muito, talvez
por já ser carnavalesco há vinte anos, é que as pessoas já até procuram e dizem
para eu ver algo que de repente possa aproveitar. Eu tenho essa sorte. Acho que
tenho entrada em todas as escolas do Grupo Especial, ninguém tem raiva de mim
nem fala nada contra. Funciona assim: tira uma pedra daqui e utiliza ali.

“Toda vez que eu pego um tecido ou um boneco para ser reaproveitado, eu estou contribuindo para o meu país. A reciclagem faz parte do carnaval e eu acho que todos os carnavalescos fazem…”

C: Em alguns vídeos e entrevistas
nota-se que você carrega nos adereços muitos produtos não tão usuais, como a
garrafa pet, bombril…
JC: Tem as garrafas pets, estou
fazendo cabelo de boneca com bombril, faço pingente com lata de cerveja…. A quadra
fica cheia de lata, então mando vir três mil latinhas e fazemos pingentes para
pendurar no carro. Trabalho com tudo que você possa imaginar, inclusive macarrão
de piscina; olho para o lixo e penso “aquilo ali vai, aquilo ali sai”.
C: Parece que seu processo de
criação é bem mais voltado para o barracão do que pro desenho. 
JC: Eu gosto mais do barracão. Eu
desenho para mim, é feio meu desenho, nunca desenvolvi esse dom e era algo que
me preocupava. Eu tenho que falar isso, mas depois que descobri que Max não
desenha, nem Joãosinho Trinta desenhava, e hoje que os carnavalescos famosos
que desenham não se dão esse luxo porque têm equipe de figurinista, fiquei mais
leve. Eu tenho figurinista e desenho para ele, faço rabiscos e o garoto vem com
o dom que é dele e desenha o figurino. Hoje, eu não tenho vergonha de dizer que
não desenho. Os desenhos não viram verdade, na hora a reprodução vira outra
coisa. Eu me garanto mesmo em alegorias e adereços, que eu adoro. Ala não curto
fazer porque não tenho paciência de fazer oito mil broches iguais. Eu deixo
eles bem à vontade, entrego o projeto e quando eles montam o protótipo me
chamam e eu opino o que tem de mais e de menos. Eu boto cadeira do lado e fico
sentado para ver a montagem dos carros.
C: Você já fez uma parceria com o
Sandro Gomes. Como era a divisão do trabalho?
JC: Automaticamente, as coisas
vão se delineando. Como eu disse, eu gosto dos carros, então tomei conta dessa
parte e ele foi cuidar de outras coisas. Uma coisa é fato: é muito difícil
trabalhar com duas ou três pessoas. As ideias uma hora batem de frente e você
tem que ter muita afinidade e cuidado para não estragar a amizade fora da
escola de samba. Se tem uma coisa que já decidi na minha vida e que eu não
permito é trabalhar com duas ou três pessoas. Se der certo, parabéns para mim e
para equipe; se der errado, faz parte. Por isso que estou no Império da Tijuca
em carreira solo, só tem eu de carnavalesco, não tenho assessores, não tenho
ninguém para falar nas minhas costas porque estou aqui todos os dias. E eu não
deixo dúvidas de que sou a pessoa que diz: vamos fazer o carro, o queijo, o
boneco…. Faço uma coisa de cada, sempre do lado, e deixo a equipe seguir com o
trabalho. Peço muito a Deus e aos orixás para que daqui pra frente, enquanto eu
trabalhar, siga como carnavalesco, porque dois não dá. É muita vaidade. Hoje
também tem aquele problema: uma aderecista cola paetê e daqui a pouco diz que a
criação é dele e não é…. Cada um no seu quadrado. É um meio de vaidade muito
grande, então não quero mais.
C: Quais histórias curiosas desse
processo criativo foram interferidas pela sua experiência religiosa e ligação
com os orixás? Já colocou determinado material no carro por saber que precisava
daquilo para contar a história, por exemplo?
JC: Uso a minha religião como
referência e livro-chave, como ano passado com Olubajé. Eu faço Olubajé na
minha casa todo ano, então é uma coisa que influencia muito e fica mais fácil
de realizar. Se você quer fazer uma escultura e o profissional não está
entendendo, traz uma peça de casa e mostra o que quer. Mas eu sou terrivelmente
contra vulgarizar. Eu faço enredo de orixá superficialmente, não boto nada que
revele algum segredo, não aceito fazer macumba em carro alegórico, botar
comidinha pra Exú…. Eu acho que Exú é Exú lá, ele recebe presentes lá. Se eu
estiver de bem e em comunhão com todos eles, a energia que vai emanar de lá vai
abençoar o meu trabalho aqui. Não gosto que misture, que tenha macumba, que
bote fita amarrada em carro alegórico, faz defumador, mata cabrito…. Não é isso
em um desfile de escola de samba. Quando eu falo da minha religião, eu quero
provar para quem é leigo que não é essas coisas que eles falam de satanás e
tudo mais. Quem conhece fica feliz e quem não conhece aprende e passa a
admirar. Eu gosto de falar de coisas que eu acredito e usar o veículo do
carnaval para propagar o lado bom da coisa. Essa é minha finalidade: tem gente
que usa carnaval para falar de política, fazer crítica…. Eu uso para render
homenagens à minha crença, que também é a crença da escola de samba. Para quem
tem um pouco de noção, sabe-se que escola de samba é diferente de carnaval.
Carnaval é uma manifestação e escola de samba é escola de samba; ela existe
independentemente de ser carnaval ou não. O samba nasceu no terreiro da Tia
Ciata, que era filha de santo, feita de Oxum, e que na prática das casas
religiosas daquela época o candomblé era a noite inteira porque era proibido
fazer de dia. Quando ele terminava às 5h da manhã, existia uma coisa chamada
samba de caboclo. Hoje você vê candomblé no meio da rua, mas naquela época era
nos fundos da casa. Enchiam de crianças brincando para despistar a polícia. E
quando acabava o candomblé começava no próprio tambor um samba de caboclo, que
se chama samba de terreiro, em que as filhas de santo sambavam com aquelas
saias, rebolavam com aquelas anáguas todas e ali surgiu a primeira escola de
samba. Então para mim desfile de escola de samba é sagrado, tem ritual, tem
abertura, tem o motivo de saudar a porta-bandeira, o canto da quadra…. E o que
eu acho mais bonito de tudo isso: por que nós temos ala de baiana? A baiana ela
vem dessa tradição nagô. E por que ela usa essas fitas, laços, saias, bordados
e babados tal como a vestimenta das filhas de santo do candomblé? Porque quando
as negras escravizadas vieram ao Brasil chegaram nuas e quando foram vendidas e
foram para as senzalas, algumas eram escolhidas para migrar da senzala para
casa grande, ou por interesse do sinhôzinho ou porque eram boas para cuidar de
criança. E com isso a mulher do cara, louca de ciúmes, pegavam as vestimentas
de origem portuguesa, inglesa e espanhola e davam para as negras se vestirem –
roupas essas que eram blusas com mangas, saias, babados e laços de fita. Só que
à noite, quando iam dormir, a negrinha lá de dentro voltava para senzala para
macumba, porque o culto deles era de noite. Então elas rodavam, aí a Oxum e
Iemanjá vinham com saias, laços e babados, e tornou-se a vestimenta do candomblé
tipicamente brasileiro. Não há candomblé na África. Essas negras introduziram
essas vestimentas que elas utilizavam e surgiram os santos do candomblé, e de
manhã iam rodar nas escolas de samba. Olha a importância do que é uma escola de
samba, uma ala de baianas e por quê ela existe; não conta ponto, mas ela é
obrigatória, ali está o fundamento de uma escola de samba. Dá um enredo, hein!

“Você vê que são pessoas despreparadas, mas não me assustam porque minha religião é de resistência.”

C: Você falou do carnaval
enquanto esse simulacro que não é a festa religiosa em si, mas no momento em
que se leva o candomblé para o carnaval também acaba sendo político pelo
momento de intolerância que vivemos, pelo gestor da cidade que temos. Como você
enxerga isso?
JC: Eu não visualizo hoje esse
terror que se transformou porque nunca foi diferente, porque estou há quarenta
e oito anos militando dentro do candomblé e nunca foi diferente. Pode ter tido
um governo ou outro melhor, mas sempre houve preconceito, inclusive do vizinho,
porque você bate macumba até dez horas da noite e ele quer reclamar. Tem
preconceito por parte dos familiares das pessoas que frequentam. Eu sei disso
porque tem uma mulher que quer fazer o santo na minha casa e o marido não quer.
Tem gente que faz o santo e me diz: pai, e agora? Como vou voltar para o meu
emprego? Você hoje faz o santo da pessoa e ela sai de lá sem nada. Na rua você
corre risco de ser agredido, apedrejado e até de tirarem as coisas do teu
corpo. Infelizmente, com os gestores que temos no país, e aqui no Rio temos
prefeito, governador e presidente completamente ignorantes, poderiam ser
budistas, hare krishnas e o cacete que eles quisessem, mas eles estão gerindo
um Estado que deveria ser laico. A doença já começa na cabeça deles. Você vê que são pessoas despreparadas,
mas não me assustam porque minha religião é de resistência.
Você vai na
igreja evangélica, assiste três cultos e vê que dá dinheiro e começa a botar
uma cortina vermelha na sua garagem e louvar a Deus gritando igual a um louco.
Com isso, em dois minutos você arranca dinheiro de todo mundo porque as pessoas
andam muito fragilizadas e em busca de algo desconhecido, e assim vão andando
por várias religiões. Tua igreja daqui a três meses é um palácio porque daqui a
pouco vem um dos mandas-chuvas daquelas igrejas enormes e levanta tua igreja para
você dividir o lucro. O candomblé não é assim, ele sempre foi e vai ser uma
religião de luta. Você começa com tudo pequenininho, até porque os orixás não
admitem esses castelos e luxos, gostam de coisas muito simples, limpas,
organizadas e é uma religião de matriz africana. Você não pode fazer uma casa
pra Omolu e encher de brilho, pisca-pisca, porque é um orixá que não pega isso.
É uma religião mais sacrificada. Quando vem o enredo da escola de samba, eu
acho que serve para esclarecimento do leigo. 
A União de Jacarepaguá, assinada por Jorge Caribé em 2013, trouxe Vassouras para a Sapucaí (Foto: Raphael David/RioTur)
C: Falando sobre o carnaval de
2019, como esse enredo chega para você e o que pode ser dito desse processo?
JC: Como eu disse, já havia feito
esse enredo, em 2013, um ano em que a escola (União de Jacarepaguá) era
favorita ao descenso. O favoritismo não aconteceu, o que foi uma grata
surpresa. Aqui, a ideia veio de um diretor e inicialmente seria sobre Vassouras,
mas foi estendido a outros quinze municípios. Resumindo, a história é muito bacana,
e a gente divide em quatro partes – porque só pode haver quatro carros na
Avenida. Primeiro, com a chegada do negro. Para minha surpresa, a maior
contingência de escravizados veio aqui pra Vassouras, coisa que eu não sabia.
Você pensa em Bahia, mas trezentos mil negros vieram para fazer parte da
lavoura do café. Pronto, já me interessou. O Vale do Café é terra desses barões
e dos negros escravizados, então estamos fazendo esse enredo porque sem os
negros não haveria barões. A
gente abre o desfile enaltecendo a força, o suor e o sangue do negro que
alimenta a semente do café e até dizemos que a semente é vermelha
.
Será um
abre-alas de cinquenta e dois metros de comprimento com dois chassis acoplados
e mais um tripé, onde fazemos uma aldeia africana em terras brasileiras para
mostrar que o negro não veio só acorrentado para plantar, mas que nas horas
vagas eles iam enaltecer os orixás deles. O abre-alas é um grande Império do
Café. A coincidência do enredo é que o Morro da Formiga também era um grande
vale de café, ainda tem lá até hoje. Quando eu olho a bandeira da escola, é uma
coroa com dois ramos de café. Dali, começamos a misturar os negros com os
barões, na abertura do segundo setor, e trazemos o requinte do tomar o café, as
xícaras de porcelana e os bailes da corte. Misturamos a nobreza ao café do
negro. O segundo carro é uma homenagem à Nossa Senhora da Conceição, a santa
padroeira do Império da Tijuca, que foi fundado em oito de dezembro. No
sincretismo – que eu sou contra – ela simboliza Oxum, que nasceu três mil anos
antes dela, e poderia ser sua mãe, na verdade. Após as missas da igreja em que
o negro era obrigado a se converter ao catolicismo, surgem as festas, os
folguedos e o folclore que são justamente a relação do negro com as festas da
igreja católica, a festa do divino, a folia de reis…. E no Morro da Formiga tem
três folias de reis que ainda desfilam e estarão no nosso carnaval. Aí vem o
carro dos diabos, da carrocinha, das xícaras e bules e passamos para o legado
que o Vale deixou. Hoje não se vive mais de café, mas do turismo, de fazendas
com criação de (cavalos) mangalargas, de indústrias automobilísticas e também
da Universidade de Vassouras, uma das melhores do país. O Cazuza se formou lá.
Tem mineração, cervejaria…. A gente tem uma última alegoria que é exatamente uma
estação ferroviária, o ponto de partida e de chegada, onde traremos a mãe do
Cazuza, a velha guarda, os jovens da universidade uniformizados e todos que são
parte desse legado. A última ala do desfile traz o café no morro. É uma
história paralela; o Vale e a Tijuca.

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