Quilombo do Samba: Dimensões do Sagrado Samba nos Quilombos Escolas de Samba

 

Texto: Osmar Filho 
Quem vai às quadras ou mesmo ao barraco de uma Escola Samba poderá reparar na quase sempre presença de um altar onde um santo ou uma santa, enfeitados com flores, copo com água, vela de 7 dias e outros detalhes que dizem respeito à religiosidade dos sambistas daquela agremiação. Essa presença  leva o visitante de imediato ao catolicismo, pois São Jorge, São Sebastião, Nossa Senhora da Conceição ou das Candeias, São Jerônimo ou São Pedro são santos do panteão romano, e nos ligam a Deus através de suas gloriosas intercessões, conectam e validam a fé do sambista, protegem e apadrinham essas comunidades… 
Apesar dessa relação da fé com tais ícones ser válida, ela representa, na verdade, um fenômeno antigo de resistência cultural negra: o sincretismo  religioso, já que igualmente não podemos deixar de perceber que esses mesmos santos são muito menos referendados nos sambas-enredo de carnaval que nas quadras das escolas e nos dias santos. Nos sambas são cantados com mais frequência os nomes de orixás, nkisis e voduns, divindades africanas da ancestralidade negra de culto milenar, existentes muito antes do tempo de Cristo. 
Atravessadas pelas resistências dos escravizados sequestrados da África ao Brasil, essas divindades negras eram representadas no passado por objetos que vinham escondidos pelos nos corpos de nossos ancestres, fetiches que por vezes eram engolidos ou agarrados dentro dos porões dos navios negreiros, fundamentos que eram transportados por eles até o cativeiro brasileiro, sendo enterrados no fundo das senzalas pelos jejes ou mesmo celebrados sob o manto de santos católicos pelos bantus desde 1530 e mais tarde pelos iorubás chegados nos fins do século 18.  
 

Com a abolição oficial de 1888, as povoações negras antes presas em senzalas ou já mesmo concentradas em torno de seus próprios quilombos e centros de culto como os terreiros migram do contexto quase estritamente rural e ganham corpo nas cidades, principalmente a do Rio de Janeiro, que conta como porto de chegada de múltiplos pretos diaspóricos, vindos da Bahia, como Tia Ciata, ou mesmo de Minas Gerais e do Vale do Paraíba no sul do Rio, assumindo lugares importantes para a formação do samba, como a região da então Fazenda Madureira, na linha dos subúrbios, e mais tarde a Baixada Fluminense. Como diz o filósofo Wallace Lopez, uma dessas “praças negras” foi a Casa de Tia Ciata, nos arredores da Praça XI. 
Certamente Tia Ciata, como as demais mulheres baianas quituteiras, ganhadeiras, rendeiras do Partido Alto baiano e mais tarde também carioca, tinham sua fé católica bastante garantida e expressa, pois frequentavam missas, faziam parte de irmandades católicas que existem até os dias atuais, tomavam conselho com os párocos locais etc. Tal prática, oriunda ainda dos tempos de escravidão, não as impedia, porém, de seguir conselhos de seus respectivos babalawos de Ifá e de ter seus próprios jogos de búzios e culto aos ancestrais africanos, sendo essas baianas por isso mesmo grandes ialorixás do candomblé, “mães de santo” na terminologia popular atual e “mãe dos pretos” na terminologia antiga, usada entre os escravizados. Na Casa de Tia Ciata, depois dos cultos de candomblé e da visita ilustres de seus orixás africanos, os sambistas do pós-abolição se reuniam para celebrar a vida terrena, dando gênese ao samba. 
Assim, com o espirito fortalecido pelas energias da natureza, pela comida preparada com cerimônia e responsabilidade pelas mulheres de nguzu e axé, esses homens – geralmente estivadores do cais do porto e outras profissões do ganho externo – tocavam samba, talvez ainda com os mesmos atabaques com que invocaram seus antepassados sagrados Legba, Ogun, Nkosi, Oxossi, Cabila, Nzazi, Xangô, Sogbo, Kaiala, Iemanja, Kavungo… ou mesmo a própria Oxum, materializada em sua filha ilustre Ciata. Sempre houve, assim, pela parte africana de nossa força e resistência, uma integração entre o sagrado e o profano, já que eram próximos os espaços onde se cultuavam orixás e ancestrais e onde se faziam os sambas de roda e as rodas de samba. 
Assim segue sendo até hoje nos candomblés mais tradicionais, em que o samba de roda baiano é meio de celebração após longas semanas de obrigação e sacrifício espiritual. Com cerveja e alegria, os “irmãos de santo” celebram a obrigação cumprida e a bênção dos seus ancestres. Quantos sambas certamente não foram compostos ao lado de quartos de santo em algumas dessas rodas dentro de terreiros?…. Dessa forma, se por um lado a fé oficial católica dos tempos coloniais sempre propunha dividir as dimensões do sagrado e do profano em regiões da vida praticamente inimigas uma a outra, a expressão negra da espiritualidade até os dias atuais demonizada e alvo de ataques por parte de inimizades auto intituladas evangélicas nunca ousou distanciar o corpo do espírito, e, com isso, o samba vem do rum e da cantiga, o batuque, da bateria, os ogans são ritmistas e as baianas, mães de santo, formando uma continuidade respeitosa entre os dois mundos.  
 

É importante atentarmos também para as relações comunitárias que conectam esses mundos. Se em África a ancestralidade que rege suas respectivas comunidades era unívoca – isso é, cada povo, cada aldeia tinha seu ancestral tutelar único de culto e linhagem –, no Brasil afro-diaspórico, essas linhagens se reconhecem e se misturam. Com isso, um povo de uma determinada linhagem, até mesmo antagônica a outra, teve de rever certas inimizades aqui no cativeiro e refazer sua existência ao conviver com o outro, como irmãos. 
Dessa convivência é que surge a complexa civilização africano-brasileira que reuniu num mesmo território saberes de diferentes vetores ancestrais, sendo, por isso, as sambalidades tão diversas entre si, nos modos de tocar das baterias, nos pavilhões de cada cor e símbolo, nos tempos em que cada escola nasceu e se desenvolveu, na comunidade em que cada axé nguzu e samba se implantaram… Teria vindo dessa coexistência ora tensa, ora pacífica, o hábito de chamarmos as escolas e comunidades de coirmãs. Quem chega à Cidade do Samba, por exemplo, observará, no grande terreno, a disposição concêntrica de uma grande aldeia, em que os barracões em círculo remetem-nos à convivência entre seus próprios Orixás Patronos, entidades tutelares de cada comunidade. 
Assim como quem visita um terreiro verá como os orixás vivem cada qual em sua casa, reino ou simplesmente quarto de santo, reunidos por famílias ou linhagens.  Tomemos como exemplo o São Jorge da Beija-Flor ue ladeia o São Sebastião da Mocidade Independente de Padre Miguel, lembrando, pela via do sincretismo, a irmandade mítico-ancestral entre Ogun e Oxossi. No mito, Ogum e quem ensinou Oxóssi a caçar, como seu irmão mais novo; na história do samba, a madrinha da Mocidade e a Beija Flor de Nilópolis. E assim por diante. 
 
A escolha da comunidade de Samba pelo seu Orixá tutelar ou Santo de devoção não acontece por livre espontânea vontade dos viventes neste mundo, mas certamente é um acordo do nkisi Tempo com os seres humanos. Tais comunidades contam com os fundadores, os pioneiros que deram ensejo à criação daquele mundo comunitário e é a partir deles que os mais novos se conectam aos mais velhos, aos ancestrais veneráveis e aos seres espirituais. Assim, se pensarmos que Tia Ciata era uma dileta filha de Oxum, orixá responsável pelo fertilidade e pelo nascimento, pela riqueza e pela beleza dos seres humanos, entendemos como o samba das escolas de samba do Rio de Janeiro se enredam num mundo de beleza e riqueza, em que pelo menos por um dia naquela avenida, empregadas domésticas e cobradores de ônibus, “gente humilde e gente pobre que traz um samba na veia, um samba de gente nobre”, como cantou Candeia, vestem-se de brilho e brilham para que todo o mundo veja o quanto possuem valor, a despeito de o mundo dizer que não. 
Também é esse ancestre ou esse conjunto de ancestres tutelares que determinam uma série de outros detalhes no desenvolvimento das suas respectivas comunidades de samba a quem protegem e alimentam. Não podemos esquecer de pormenores importantes para o axé ou ngunzu comunitário, como as cores da escola. A vibração do Salgueiro pelo vermelho, por exemplo, remete ao seu patrono Xangô, a quem a escola homenageou em 1989 e 2019. O vermelho igualmente se relaciona com a esposa desse orixá, Oya-Iansã, que celebrada por essa vibração, foi cantada em 1984 com o belo refrão: Oya, Oya, água de cheiro pra ioiô, | vou mandar buscar na fonte do senhor. O vermelho de Xangô e do Salgueiro confluem campos de significados que se espalham em sua linguagem como busca de equilíbrio e justiça, atributos de seu ancestral maior. Seu lema “nem melhor nem pior, apenas diferente” remete a essa justiça; sua Bateria chamada de “Furiosa” reflete o poder do fogo e o lado guerreiro do alujá, tocado para Xangô, além dos enredos que mormente referenciam o negro em posição de luta e nobreza e acentuam as associações entre essa escola de samba e seu orixá de devoção. 
A Estação Primeira de Mangueira celebra por sua vez Iansã, dona dos céus cor de rosa, como da sua bandeira. Em 2016 sagrou-se campeã colocando à frente de seus cortejos mulheres negras guerreiras e os búfalos que guardam os mistérios dessa força da Natureza. Assim como em 2021 o enredo da Mocidade Independente de Padre Miguel falará da identidade da escola a partir de seu patrono Oxóssi. Suas cores verde e branco associam-se ao orixá dos caçadores, patrono dos caboclos e dos povos de floresta. A vocação da escola de Padre Miguel para falar das questões territoriais indígenas foi explorada com esmero nos anos 1980 por Fernando Pinto em pelo menos 2 enredos emblemáticos: Como era verde o meu Xingu e Tupinicópolis, além de outras características do DNA independente como a irreverência e a independência que carrega no nome terem íntima relação com a personalidade aguerrida e desbravadora de Oxóssi, livre por natureza como os índios e os negros caçadores. Sagrada a Oxóssi também parecem ser outras agremiações queridas e basilares do samba carioca, como a Portela e o Paraíso do Tuiuti. 
 

Todas essas conexões ancestrais e espirituais fazem do samba algo profundamente sagrado e sério. A ancestralidade acumulada em cada corpo e espírito de pretos e pretas sambistas dará conta de cobrar a quem não respeitar esses fundamentos, a quem desvirtua o lugar de fala desses filhos e filhas de linhagens pretas. É com tristeza que percebemos hoje que a espiritualidade preta comunitária não é vivenciada pela maioria das pessoas a quem essa ancestralidade serve de herança, tanto o cristianismo forçado de outros tempos, quanto a debandada de baianas para igrejas evangélicas atualmente apontam para os desafios que os sambistas do futuro terão de enfrentar. Para que não cheguemos aos absurdos de não saber os fundamentos de uma bateria de escola de samba ou o porquê de as baianas girarem. E porque giram espalhando axé e ngunzu, não podem entrar na avenida sem suas anáguas e saias de roda.  

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