#QuilombodoSamba: Arte de tecer o mundo – Baianas que alimentam o sagrado dos Quilombos do Samba

 

O Quilombo do Samba é um coletivo negro de pesquisadores do carnaval brasileiro propondo uma discussão afrocentrada sobre a festa. Quinzenalmente aos sábados, suas reflexões vão ar aqui no Carnavalize.
Texto: Gabriela Sarmento e Guilherme Niegro
As memórias das Escolas de Samba estão ligadas pelas mãos das Tias Baianas, que não são apenas uma ala em cada desfile; as baianas são registros do matriarcado africano aqui na diáspora do Rio de Janeiro. Sua origem, se é que podemos dizer assim, remete à figura antiga dos folguedos dos Quilombos, passando pelas folias das Congadas e Reisadas, Ranchos e Blocos.
A raiz estás nos terreiros os Quilombos religiosos, com os Afrodiásporicos descendentes de africanos e africanas que foram escravizados por quase quatro séculos, que se confluem no final do século XIX e início do século XX – período da falsa “abolição” de negros e negras escravizados (as). Afrodiásporicos vindos da Bahia, do interior do Rio de Janeiro, de Minas Gerais e São Paulo, principalmente. Essas confluências das memórias de quatro séculos se sustentam na região chamada de Pequena África. Concordamos aqui com o Espaçólogo Wallace Lopes da Silva: só o significado desta expressão que foi esvaziada. 
O autor cunha o conceito de geosambalidade, sobre a especialidade territorial desta tal Pequena África, partido do elemento de memória de identidade. Cada corpo negroafricano carrega com sigo uma África ora desperta ora potencializada, e era isso que as Tias Baianas realizavam nesta Grande África que se transformou o Rio de Janeiro, principalmente no pós-abolição. (Ao mesmo tempo que surge a Deixa Falar no Centro, surge a Mangueira na Zona Norte e, na ainda região rural de Madureira, surge a Portela.)
Samba em quimbundo, no dicionário bantu de Nei Lopes, se traduz por “orar, rezar”. E quem detinha o poder religioso sobre o samba? As Tias Baianas, as yalorixás, as mães baianas de santo, as baianas de ganho, as baianas de rua, as baianas do acarajé, as baianas do Samba ou simplesmente baianas. Os cortejos carnavalescos têm como essência tradicional sua ligação religiosa, a partir da obrigatoriedade da ala das baianas em todas as escolas, as protetoras e detentoras do axé (força vital). Com o surgimento das primeiras escolas de samba nos anos 20 do século passado, estas baianas ganham um conceito de homenagem. As escolas de samba surgem a partir dos sambistas compositores e bateria, passistas e baianas, formando as bases sólidas de qualquer agremiação. 
A Estética das Baianas se configura por saia longa, a bata ora rendada ora sem renda, o turbante na cabeça, o pano da costa e os balangandãs em determinadas ocasiões, eram as donas das ruas no período em que a mulher branca era submissa em detrimento do patriarcado europeu, em que o homem branco era o senhor e o homem negro era marginalizado ou levado a trabalhos braçais longe das vistas das populações do centrais. No caso o cais do Porto, muitos trabalhavam na estiva. 
Então, estas baianas eram as donas das ruas da cidade, vendiam seus quitutes para o ganho familiar, assim como no matriarcado africano, a economia alimentar era função feminina. Raul Lody considera a indumentária das baianas como um território de identidade experimentada no corpo, reflexo da cultura, crenças e modos da vida negra africana. 
No período colonial, para o escravizado, ter roupa era sinônimo de luxo. Cada indivíduo, dependendo dos senhores e das senhoras, tinha o direito de ter até duas peças de roupas, que eram feitas na tecelagem funcional das fazendas pelas próprias mulheres negras. O primeiro esboço da roupa das baianas se chamava roupa de sura, que era composta por saia e camisa, sem nenhum adorno, já que era proibido por lei escravizados usarem joias. Anos mais tarde nos terreiros, foi adotada a roupa de ração, um traje liso, sem anáguas, com camisa lisa ou sem, e saia na altura do busto. No pós-abolição, trabalhando como ganhadeira, saía às ruas vendendo seus quitutes, frutas e objetos artesanais trazidos dos mercados da Costa do Marfim.  
Artesanal eram também as fantasias das baianas nas Escolas de Samba. Para Candeia e Isnard, as religiões afrodiásporicas são importantes instrumentos de resistência e memória. As Tias Baianas em seus terreiros protegiam todo o sagrado das Escolas de Samba do racismo policial e da branquitude, “foram perseguidos pela polícia, sua luta foi muito grande, seu esforço extraordinário a fim de manter seus hábitos e preceitos”. 
Na arte africana ou afrodiásporica, a matrilinearidade tem simbologia centrada na figura feminina, da mulher preta. A centralidade no Rio de Janeiro nestas mulheres foi muito importante. São elas as matrigeradas da fertilidade (quem dá a vida e também que trazem a ela) e da alimentação, foram elas quem cuidaram e cuidam do nosso sagrado, são as resistências das nossas linhagens e quem tecem nossas memórias espirituais. 

A partir da entrada de pessoas alheias às Escolas de Samba, estas mulheres sacras são desvalorizadas como a modificação de suas indumentárias  que passam a ser parte do enredo e não uma visão de sacralidade artesanal coletiva, ganham uniformidade e perdem tradicionalidade com a desculpa da modernidade e criatividade de um especialista em indumentária, muitas vezes com a visão eurocêntrica dentro de um espaço africano e afrodiásporico. 
Mesmo com tudo isso, as baianas não vão acabar e seu sentido matriarcal não se findará. Sua arte de tecer caminhos e descaminhos resistirá enquanto existir um ventre de uma mulher preta. 

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