#SérieBatuques: Que rufem os tambores! O baticum majestoso, imperial e insulano

Durante o mês passado, na Série Padroeiros, o Carnavalize abordou a relação das escolas de samba com os santos e os orixás de casa. Como refletir as identidades religiosas das suas comunidades sem se relacionar com a maneira com a qual elas regem seus batuques para colocar o cortejo na Avenida? Para falar sobre isso, durante as quartas-feiras do mês de agosto, o Carnavalize vai se debruçar sobre as baterias cariocas com a Série Batuques.

Texto: Eryck Quirino e João Vitor Silveira
Revisão: Luise Campos 
Investigar esses ritmos é perceber as ligações de um universo quase à parte, no qual as conversas se dão por sinais e pela batuta aguda dos apitos, os quais se manifestam a todo momento ditando o andamento do som. Assim, os símbolos visuais e auditivos das direções de bateria chamam a atenção dos ritmistas e se misturam na complexa melodia da orquestra que conduz a escola em sua caminhada. É dela a missão de ser a primeira ala a começar o desfile e a última a encontrar a linha final.
Existe frases que permeiam diversos âmbitos da vida que, em certos casos, se aplicam com maestria ao mundo do samba. Uma delas é a que diz que “parecido não é igual”, que é um dos motes para as viagens que faremos no texto de hoje. Ao ouvido desatento, as levadas rítmicas das caixas que contam com rufada podem se misturar e, muitas vezes, soarem iguais, ainda mais com divisões rítmicas tão parecidas. É exatamente por isso que, para nós, é importante desvendar esses códigos e mostrar que as batidas não só têm diferenças no que diz respeito à sua execução, mas também com relação à forma como se relacionam com o resto da bateria em cada escola. 
Dessa forma, nossos primeiros passos nos levarão à Madureira, onde nossos caminhos irão se cruzar entre Portela e Império Serrano. Dialogando com as duas maiores escolas da região, iremos desvendar signos que se parecem, mas, ao mesmo tempo, se diferem. As caixas, quando conversam com os agogôs – como acontece na bateria dessas agremiações -, podem produzir sons e identidades semelhantes, mas, na verdade, elas têm características únicas. Ao se analisar com cuidado, elas não nos deixam confundir a Tabajara do Samba e a Sinfônica do Samba. Seguindo a ordem de idade, chegaremos ao final da nossa trajetória à União da Ilha, onde também temos signos parecidos, mas com identidade própria e única.
“Tabajara ê, Tabajara ô, a Tabajara do Samba chegou”
Como bons sambistas, respeitamos os mais velhos e, como manda o figurino, iremos prestar reverência à mais antiga das três escolas de samba do texto de hoje. Sendo assim, nossa primeira parada em Madureira será na Majestade do Samba, lar de nomes estelares da nossa folia, como Natal, Monarco, Clara Nunes, Paulo da Portela, Tia Surica, Candeia, Heitor dos Prazeres, Malandro Histórico, Zé Ketti e Paulinho da VIola. Esse verdadeiro celeiro de bambas se originou a partir de alguns blocos carnavalescos da região de Oswaldo Cruz e Madureira como Ouro sobre Azul, Quem Fala de Nós Come Mosca, Baianinhas de Oswaldo Cruz e o Conjunto de Oswaldo Cruz, este último que viria mais tarde a ser chamado de Vai Como Pode.
Sendo uma das mais tradicionais agremiações do Rio de Janeiro – inclusive a maior vencedora dos concursos de desfiles – a Portela viu de perto o início da formação das escolas de samba e a sua relação com o poder público, ela mesma passando por experiências de tentativa de controle mais direto por parte deste. Alguns dos seus fundadores relatam, coisa que não há como comprovar com exatidão nos dias de hoje (aquele papo recorrente sobre a história oral no mundo do samba), que o próprio nome da Portela é oriundo da ação de esferas governamentais para ordenar a folia. Segundo esses relatos, o delegado Dulcídio Gonçalves teria argumentado contra o nome Vai Como Pode, que, segundo ele, não seria adequado para denominar uma organização séria, tendo sugerido Portela como designação para a agremiação, inspirado na Estrada do Portela. 
Mas algo que sabemos de fato é que a tradição da Portela se estende por todos os braços da festa carnavalesca. Colecionando alguns dos maiores nomes da história da folia em seu rol de bambas, passando por compositores, cantores e dançarinos, também não seria diferente quando falamos de seus ritmistas e daqueles que carregam a responsabilidade de comandar a orquestra rítmica que embala os desfiles das escolas de samba. Já tendo contado com o lendário Mestre Marçal em suas fileiras, também teve no comando de sua bateria os mestres Bombeiro, Timbó, Mug da Portela, Paulinho Botelho, Carlinhos Catanha e Marçalzinho, filho de Mestre Marçal. 
A bela caixa da Tabajara do Samba no ano de 2018. Foto: Dhavid Normando/Riotur
Mestre Marçal ficou conhecido por elevar o patamar da bateria da Portela para uma outra prateleira. Foi o seu trabalho ao longo das décadas de 1970 e 1980 que tornou a bateria da Portela bem reconhecida dentro do Carnaval, empregando um estilo único, tendo como uma das características marcantes um diálogo intenso e rico entre as caixas e os surdos de terceira. Era bem sabido que essa conversa se relacionava com as batidas que ocorriam nas casas de candomblé, tendo os surdos de terceira da Portela uma relação próxima com os atabaques de corte. Muitos dizem que essa relação se estabeleceu pela presença na Tabajara do Samba de muitos ogans, aqueles que conduzem os batuques nos rituais religiosos, principalmente no naipe de surdo de terceira. 
Mas, por alguns anos, a bateria da Portela teve alguns percalços. Muitos deles foram causados por brigas internas causadas por uma troca de comando. Nilo Sérgio, atual mestre de bateria da Tabajara do Samba, conta em entrevista ao site Apoteose: ”Quando o Mestre Marçal saiu da bateria e o mestre Timbó assumiu, aconteceu uma ruptura muito grande. Muitos que eram “partidários” do Marçal diziam que não saíam com o Timbó, e quando o Timbó saiu, anos depois, alguns que eram “partidários” do Timbó, diziam que não sairiam com outro.” O próprio mestre Nilo conta que, por causa dessa rusga, espaços se abriram e foi por causa da leva de ritmistas que saíram com a entrada do Timbó que ele entrou na bateria, no naipe de agogô.
Mas essa divisão dentro da bateria da Portela não fez apenas com que espaços fossem abertos na Tabajara do Samba, mas também fez com que um dos naipes mais característicos da bateria, as caixas, começassem a apresentar problemas nos desfiles. Uma das razões disso era que os ritmistas que tocavam com Mestre Marçal tinham uma visão do toque, aqueles que tocavam com o Timbó tinham outra, o que resultou numa disputa após a saída de ambos. Alguns realizavam uma levada e outros executavam outra, de forma que o toque acabasse ficando “sujo”, tendo como consequência o desconto de pontos em algumas oportunidades. 
Mestre Nilo Sérgio, comandante da Tabajara do Samba desde 2006. Foto: Leandro Andrade/Divulgação
Quando o mestre Marçalzinho deixou a bateria da Portela, em 2005, devido a outros compromissos profissionais, o já diretor Nilo Sérgio foi alçado ao posto de mestre da bateria. Ele diz, na entrevista ao site Apoteose, não querer ser mestre na ocasião, mas que acabou assumindo o cargo para que não viesse um ritmista de fora da escola. Ao assumir a bateria, no ano de 2006, sua primeira preocupação foi reformular o naipe das caixas. Não só garantir que a levada estivesse sendo executada de maneira correta, mas também garantir que a Portela tivesse o melhor toque de caixa dentro de sua realidade, de forma que, nesse processo de reformulação, ocorreu uma mudança na forma de execução do instrumento. 
A levada das caixas da Portela contava com três rufadas dentro da sua divisão rítmica. Para além da confusão das individualidades dos toques dos ritmistas dentro do naipe, o próprio tipo de levada começava a prejudicar sua realização, pois, à época, o andamento das baterias das escolas de samba começou a se acelerar. Dessa forma, executar as três rufadas era uma tarefa quase impossível, muitas vezes embolando a bateria. Sendo assim, após estudar o toque e testar algumas variações, chegou-se na versão final com uma rufada, que é usada pela Tabajara do Samba até os dias de hoje. Mas a tarefa não foi fácil, e precisou de muita perseverança – e também certa dose de coragem – para levar as mudanças adiante, ainda que, eventualmente, fosse necessário cortar os ritmistas que não se comprometessem com o trabalho. 
Sob a batuta do mestre Nilo Sérgio, a Tabajara do Samba seguiu assumindo com cada vez mais gosto a marca que havia lhe sido característica ao longo dos anos. “Macumbeiro” com orgulho, como ele mesmo diz, Nilo Sérgio gosta de incorporar os ritmos de origem africana na bateria da Portela, sempre que o samba-enredo em questão abre essa possibilidade. Dessa forma, a introdução de ritmos como o ijexá e o 6 por 1 puderam ser ouvidos nas apresentações da agremiação ao longo dos anos de comando do mestre. Além disso, também houve diversas convenções com ritmos de origem africana utilizados para os esquentas da escola, sendo um dos mais notórios o que aconteceu no Setor 1 da Marquês de Sapucaí no ano de 2012, quando desfilou com o histórico enredo “E o Povo Na Rua Cantando é Feito uma Reza, um Ritual”. 
Sendo um dos mais longevos mestres da Sapucaí, Nilo Sérgio está no comando da Tabajara do Samba há 15 carnavais, estando atrás apenas do mestre Plínio da Beija-Flor com 24 carnavais seguidos no comando ininterrupto da mesma escola. E, como bem sabemos, o Carnaval não costuma ser gentil com os mestres de bateria – mudanças diante de resultados negativos não costumam ser raras. Para além de apresentar um resultado positivo em notas para a agremiação, o mestre Nilo fez um trabalho de resgate essencial para a bateria da Portela, colocando nos eixos algumas questões que haviam se perdido por motivos além do seu controle. Mas ele não se engana quanto à sua longevidade e, da mesma forma que foi auxiliado no passado pelos mestres “cascudos” da época, hoje, sendo um dos mais experientes, devolve a ajuda que recebeu para seus diretores e ritmistas, sendo um dos grandes mestres do nosso Carnaval.
“Tem poesia no ar, você já sabe quem sou… Pelo toque do agogô”
Se formos levar em consideração a geografia dos dias de hoje, nossa caminhada a partir do nosso destino prévio para o próximo endereço é bem curta. Menos de um quilômetro separam a atual sede da Portela, na Rua Clara Nunes, da quadra do Império Serrano, na Avenida Ministro Edgar Romero. Entretanto, ainda que essa distância seja curta para os pés, no coração ela se prolonga em cima de uma rivalidade histórica. A grande verdade é que Madureira não poderia ser mais feliz em abrigar duas escolas do porte da Portela e do Império Serrano e, talvez, festa maior não se tenha visto do que em 2017, quando o caneco de campeã do Carnaval se duplicou em Madureira, com a vitória da Portela no Grupo Especial e do Império no Grupo de Acesso. 
Fundado em 23 de março de 1947, vindo daí seu famoso apelido de “Menino de 47”, foi originada de uma dissidência da Prazer da Serrinha, na comunidade homônima. Não é exagero concordar com a letra do samba-enredo que a agremiação levou para a Avenida para conquistar seu título do ano de 2017. Quando os seus componentes cantam a plenos pulmões que a sua história fala por si, eles contam a verdade. O Reizinho de Madureira tem uma tradição fincada no coração do Carnaval carioca, sendo um dos pilares para a construção dessa trajetória momesca, de forma que é impossível falar dessa nossa festa popular sem fazer a eles a devida referência. 
Desde que foi fundada, a agremiação nunca parou de gerar bambas essenciais para a preservação da nossa arte: Tia Eulália, Molequinho, Mano Elói, Tia Maria, Mano Décio, Silas de Oliveira, Dona Ivone Lara e Wilson das Neves, entre tantos outros. Começando sua trajetória vencedora no primeiro desfile após sua fundação, no ano de 1948, a escola da Serrinha mostrava para todos e, principalmente, para os dois rivais mais próximos, que havia chegado não apenas para marcar presença, mas para disputar em pé de igualdade com as coirmãs mais velhas, sem dever nada a ninguém. E boa parte da fundamentação dessa tradição vencedora passa pela Sinfônica do Samba.
Mestre Gilmar no comando da bateria do Império Serrano no Carnaval de 2017. Foto: André Melo-Andrade
E, se a árvore do Império Serrano deu tantos frutos, não seria diferente com a Sinfônica do Samba. A bateria da Serrinha sempre esteve sob a batuta de mestres que são referência não só dentro da escola, mas para todo o mundo do Carnaval, como mestre Faísca, mestre Birão, mestre Wanderley, mestre Átila, mestre Sílvio Manoel, entre outros sábios que estiveram no comando desse tradicional quesito. Nessa seleta lista, também esteve o mestre Gilmar, que comandou a Sinfônica de 2010 até o último desfile da agremiação. Com a tradição desses mestres, a bateria do Império se fundamentou e se tornou inconfundível. E a base desse fundamento está na sua “cozinha”. 
A dita “cozinha” da bateria (composta por surdos, caixas e repiques) do Império Serrano tem uma afinação mais grave, como o mestre Gilmar diz: ”A cozinha do Império Serrano, historicamente, é mais grave. A bateria do Império é uma bateria pesada. A afinação dos surdos, sendo a primeira bem grave, a segunda médio-aguda e a terceira aguda contribui para isso. A gente usava bastante os surdos de segunda nas bossas, então a gente precisava dessa boa resposta e desse balanço.” E o balanço da bateria do Império mora bastante nas particularidades da escola em relação aos surdos. 
Os surdos de primeira do Império eram divididos em dois tipos: metade deles eram surdos de 26 polegadas e 55 centímetros de altura, sendo a outra metade surdos de 29 polegadas com também 55 centímetros de altura, dando um bom peso e o tom grave característico dessa bateria. As marcações de segunda eram de 24 polegadas e as terceiras eram de 18 polegadas, com algo entre 65 ou 70 centímetros de altura, conhecidas também como “charutinho”. Outra particularidade do Império Serrano é a diferenciação entre as terceiras e a formação dos surdos, como o mestre Gilmar explica:
”Dentre as terceiras do Império, geralmente 18, nós temos dez terceiras que vão fazer os desenhos definidos para o samba. Essas terceiras têm o revestimento de couro de um lado e o revestimento de nylon do outro, tendo um agudo mais alto. Já as oito terceiras restantes vão ser apenas de seguimento, fazendo só a sustentação rítmica, e essas vão ter o revestimento de couro dos dois lados, tendo um agudo um pouco mais baixo. Já na hora de formar a bateria, diferente das outras escolas que têm primeira e segunda intercaladas nas laterais e as terceiras espalhadas, nós temos as segundas nas laterais e, nos corredores do meio da bateria, nós intercalamos as primeiras e as terceiras de desenho, com as terceiras de seguimento vindo espalhadas ao longo da cozinha.” 
Quando chegamos ao naipe de caixas, uma das grandes estrelas da Sinfônica, também há muita história para contar. Apesar de ser uma característica tradicional, o característico toque rufado e acentuado do Império por um tempo se havia perdido em meio a floreios e influências pessoais na levada do instrumento. Durante a gestão do mestre Macarrão como Presidente da Bateria, começou um processo de padronização desse toque, que foi levado adiante pelo mestre Átila e pelo mestre Gilmar, com auxílio e opiniões dos grandes mestres Wilson das Neves, Faísca, Birão e Wanderley. O resultado foi executado em caixas de 12 e de 14 polegadas, sendo as de 12 com uma afinação um pouco mais alta. Ainda assim, a afinação das caixas do Império Serrano é a mais grave entre as baterias estudadas aqui. Em consonância, há também a levada de repique da agremiação, mais próxima da tradicional, mas com rufadas ocasionais, para ajudar na sustentação do ritmo das caixas. 
E é justamente a estrutura pesada da cozinha do Império Serrano que permite que os naipes leves da bateria possam brilhar. Mas, até mesmo para se chegar a isso, houve um trabalho de padronização e limpeza em todos eles: 
”Esse trabalho de padronização foi necessário. As cuícas a gente teve que padronizar, sair da questão muito individual. Ainda havia alguns momentos dos sambas em que a gente liberava os floreios, mas com muito cuidado. Os chocalhos também passaram por uma padronização, todo mundo entrando junto e pra frente, junto também com uma renovação nos instrumentos. E os tamborins também, que é algo que esteve quase em extinção. Naipe de tamborim é algo muito “flutuante”, o cara toca aqui, toca ali, e acaba perdendo a identidade da escola. Até a gente fazer um trabalho para unificar isso, demora.” 
Edgard do Agogô, criador de um dos instrumentos que mais caracteriza a bateria do Império.  Foto: Guilherme Pinto / Agência O Globo Newsletters
E não podíamos terminar sem falar do agogô. O instrumento que talvez seja a maior identificação para o público externo quando se pensa em Império – é quase impossível ouvi-lo e não associá-lo ao Reizinho de Madureira – quase marcou história na escola vizinha. O grande Edgard do Agogô levou primeiramente o instrumento para a Portela, mas num desentendimento com o então presidente Natal, que não aceitou a inovação, resolveu apresentá-lo a alguns amigos do Império, que o incorporaram na bateria. Isso criou uma marca para bateria e o agogô foi, inclusive, o primeiro instrumento do mestre Gilmar. É ele quem faz questão de exaltar aqueles que ajudaram a construir sua caminhada: “Me sinto muito afortunado de ter tido a oportunidade de trabalhar com tantos feras. Wilson das Neves, nosso pai maior, Átila, Macarrão, Faísca, Birão, Wanderley, Sílvio Manoel. Ter contado com eles não só na minha trajetória até virar mestre, mas também enquanto mestre, foi essencial.”
Vem ver, vem ver! A “Baterilha” arrepiar!

Findadas as nossas andanças pelo bairro de Madureira, nossa viagem toma rumo para um local que a linha do trem não alcança, mas, ainda assim, se costura na imensa colcha de retalhos que é o mundo do samba. Colcha essa constituída por um pedaço de tradição de um lado, um outro corte de tradição de outro, dando origem à cultura que rege nossas vidas. E, se falarmos de identidade, talvez a União da Ilha seja uma daquelas escolas que tem uma tão marcada ao longo de sua história que é se torna tarefa fácil traçar como a agremiação gosta de se comunicar não só com seus componentes, mas com todo o público dos desfiles. 
A escola, fundada em 7 de março de 1953, tomou emprestado o nome e as cores do União Futebol Clube, time de futebol da área da Ilha do Governador do qual os fundadores da escola faziam parte à época. Alguns anos mais tarde, em 1960, ao ganhar a aprovação para participar dos desfiles do Rio de Janeiro, teve seu nome modificado para o atual: GRES União da Ilha do Governador. A escola marcou sua identidade ao levar para a Avenida desfiles memoráveis de tom irreverente, festejando a essência de brincar o Carnaval com leveza e alegria. Nessa trajetória, nos brindou com sambas que ficaram eternamente marcados na história cultural do Rio de Janeiro, chegando a transpor as barreiras do Carnaval, como Domingo (1977), O Amanhã (1978), É Hoje (1982) e Festa Profana (1989).
O intérprete Ito Melodia, um dos maiores cantores da história do Carnaval e herdeiro do legado de Aroldo Melodia. Foto: Gabriel Nascimento / Riotur
Também está marcada na história do Carnaval uma das maiores dinastias vocais da folia carioca. Sendo quase unânime a sua presença no rol dos maiores intérpretes da história dos desfiles, Aroldo Melodia deixou sua marca incrível na União da Ilha, com sua voz marcante e quase inconfundível. O “quase” aqui fica por conta do fato de que, às vezes, temos a impressão de que é sua voz que ouvindo nas atuações do seu incrível filho, Ito Melodia, que carrega o legado familiar conduzindo o carro de som da Ilha ininterruptamente desde 2002, ainda tendo defendido a agremiação em outros dois anos. Mas a tradição familiar não parece conduzir apenas os caminhos dos microfones de canto da azul, vermelha e branca da Ilha do Governador. Essa história se estende também para o caminho dos batuques. 
Sendo hoje um dos mestres de bateria da União da Ilha, Marcelo Santos sabe desde cedo – muito cedo – o que significa ter no sangue o ritmo da Baterilha. Ele é filho de Odete, ritmista de chocalho da bateria, com o lendário mestre Tinico. Marcelo e seu irmão gêmeo Maurício sabem desde a barriga da mãe o que é estar em constante contato com o ritmo. Entretanto, ainda que veja o lado positivo de ter essa herança familiar na bateria, ele não esconde que também é uma responsabilidade: “A gente tem que prezar pelo nome que veio antes. Desde que me tornei diretor, algumas vezes quando a bateria da Ilha não andava muito bem, eu escutava na rua: ‘Na época do teu pai era melhor hein? Teu pai merece coisa melhor!’ Então, ter esse legado é muito positivo, mas é também uma responsabilidade”. 
Porém, a Ilha não abraça somente aqueles que já têm o ritmo da Baterilha correndo na veia desde a infância. Keko Araújo tem uma trajetória diferente, mas de muito sucesso, premiada em 2019 ao ser alçado ao posto de mestre de bateria junto com Marcelo. Oriundo da escolinha de bateria da escola da Ilha do Governador, Keko trilhou todos os passos possíveis: aluno da escolinha, professor dela, ritmista da bateria, diretor da bateria e, hoje, mestre. E esse itinerário traçado é motivo de orgulho: “Poder percorrer todo esse caminho é muito gratificante. Fui repique do mestre Paulão e sinto que chegar a esse posto foi merecido. Posso dizer que percorri um grande caminho até conquistar essa faixa preta. E hoje eu tenho segurança de fazer o meu trabalho.” 
Os mestres Keko Araújo e Marcelo Santos, respectivamente, à frente da bateria desde 2018. Foto: Fábio Felder
E, por falar em repique, a forma de tocar esse instrumento é uma das grandes características da bateria da União da Ilha. Historicamente, a Baterilha sempre foi conhecida como uma grande potência no naipe. Há muito tempo atrás, houve um concurso de repique realizado no Copacabana Palace, tendo acontecido duas edições: uma vencida por Carlinho Coca e uma por mestre Tinico, da União da Ilha. Mas não para por aí. Alguns mestres da União da Ilha, inclusive, são reconhecidos como exímios tocadores do instrumento, plantando essa semente em seu trabalho. São exemplos disso mestre Odilon e mestre Riquinho, além de exímios repiques de bossa como Jagunço, Carioca, Bigode, Luquinhas, assim como os próprios mestres Keko e Marcelo. 
Outro grande trunfo da bateria da União da Ilha é o naipe de caixas. Já tendo passado por algumas transformações ao longo dos anos, ele passou por uma reformulação recente para reencontrar a batida de caixa rufada introduzida pelo lendário mestre Paulão. Mas essa fortaleza foi se perdendo, como conta o mestre Marcelo:
“A bateria passou muito tempo sem ter uma renovação, que é sempre saudável para a bateria. Muitos foram ficando velhos, alguns saíram do Carnaval, outros pararam, alguns faleceram, e essa batida se perdeu. Para poder suprir essa questão, os mestres foram convidando ritmistas pra fazer a batida de caixa em cima, o partido alto, até que em 2014 o Mestre Thiago Diogo implementou todas as caixas sendo tocada em cima.”
Essa mudança permaneceu com o Ciça em 2015. Porém, os ritmistas mais antigos e os diretores da escola para o ano de 2016 fizeram um pedido para o mestre: que fosse resgatada a batida rufada da bateria da Ilha. A solicitação foi atendida, de forma que esse resgate começou para o Carnaval de 2016. Em meio a essa mudança, também foi implementada outra mudança, que fez com que todas as caixas tocadas embaixo fossem de 14 polegadas. Isso alegrou muitos ritmistas e gerou frutos para a escolinha, já que, segundo Marcelo, agora são formados ritmistas versados no toque tradicional da escola. Ele também exalta mestre Ciça pela escolha: “O Ciça fez o nome dele e ganhou tudo com as caixas em cima, no partido alto. Ele saiu da zona de conforto dele pra poder fazer esse resgate e implementar novamente essa batida característica da Ilha. E nós ficamos muito felizes com isso.” 
E a admiração ao mestre Ciça não para por aí. A influência de um dos maiores mestres do Carnaval carioca com certeza foi importante para que Marcelo e Keko ao realizar o trabalho que fazem na Ilha do Governador. Inclusive, sob a batuta de Ciça, Keko começou a se debruçar mais sobre a questão da afinação da bateria, estudando bastante o assunto. Mas, tendo trabalhado com tantos mestres que inspiram todo o mundo do Carnaval, ele presta reverência a todos eles: “Eu procuro pegar um pouquinho de cada um pra construir um trabalho forte meu. Trabalhei com muito mestre bom, então tento tirar um pouco de cada. mestre Paulão, mestre Riquinho, mestre Bira, mestre Odilon, mestre Ciça, o próprio Thiago Diogo. Aprendi com todos eles.” 
Por fim, é também uma das principais características da bateria da União da Ilha seu forte naipe de tamborins. Na década de 1980 e 1990, a Baterilha era conhecida por ter uma ala de tamborins muito comentada pelo mundo do Carnaval, contando com ritmistas famosos nesse meio. Mestre Marcelo cita alguns nomes: “Vânia, Betão, Ivan, Papaco, Zélio. Essa galera comandava a ala, não tinha um diretor de fato, mas eles eram conhecidos por todos. Então eles se resolviam e faziam uma ala completa, com um carreteiro muito limpo. Hoje em dia, nós também voltamos a ter uma ala muito forte de tamborim, com o trabalho do nosso atual diretor Yan, que tem sido muito comentado como um dos melhores do Carnaval. Ele está fazendo um trabalho muito bom.”
Com o fim deste terceiro capítulo da nossa Série Batuques, nos aproximamos do nosso desfecho na semana que vem. Se ainda não leu, confira o texto sobre o Partido Alto (Estácio, Tijuca, Salgueiro e Vila Isabel) e a batida do surdo um da Estação Primeira de Mangueira. Para o último capítulo, iremos falar das características do baticumbum independente da Não Existe Mais Quente.
Além da Série #Batuques, você confere também toda segunda-feira a #SérieMulheres durante o mês de agosto. 

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