#SérieEnredos: O carnaval e as histórias à margem da História

Por Redação Carnavalize




“A
História é escrita pelos vencedores”. A frase atribuída a George Orwell –
pseudônimo do escritor inglês Eric Arthur Blair – evidencia uma centralização na construção dos discursos, que proporcionam grande exaltação aos “vencedores” das
guerras e disputas de poder, e uma fácil vilanização ou esquecimento aos que
sofreram com as dominações que moldam a realidade da nossa população.

É por essa
desproporção que outras fontes de disseminação de conhecimento e dos
acontecimentos que moldaram nós e nossos povos se tornam necessárias. A
História pode ser contada, também, fora dos centros de ensino convencionais. Os
saberes são disseminados na rua, na internet, nas casas religiosas, nos
terreiros, no sofá de casa e… nas escolas de samba! Nossas agremiações, por
diversas vezes, assumem-se como responsáveis por contar histórias que a
História marginalizou, a exaltar figuras da realidade ou do folclore que foram
sucumbidas em prol de uma perspectiva preconceituosa para falar sobre o mundo e
a vida.

Então, se
prepara que o Carnavalize fez um levantamento mega especial de enredos que
homenagearam figuras importantes para a construção da nossa sociedade e
relevantes para a cultura do Brasil, que nem sempre figuraram nos livros de História.

Antes de
começar, um aviso: textos novos todas quartas e sextas-feiras na nossa
#SérieEnredos! Confira o primeiro e o segundo clicando aqui e aqui,
respectivamente!

Xica da Silva – Salgueiro 1963

Não se
pode falar acerca de personagens que muitas pessoas conheceram por meio das
agremiações do carnaval sem falar da Academia do Samba. A escola tijucana foi
pioneira em possuir uma identidade temática de valorização do negro, guiada
pela direção de Nelson de Andrade e pelas visões de Fernando Pamplona e Arlindo
Rodrigues. Em 1963, com os desfiles pela primeira vez na Avenida Presidente
Vargas, o carnaval do Salgueiro inovou tanto com a escolha do enredo – que pela
primeira vez no carnaval exaltaria uma mulher negra – quanto pela coreografia
de parte de seus integrantes em minueto –  manobra ousada para época, concebida pela
dançarina Mercedes Baptista e que proporcionou uma das fotos mais emblemáticas
do carnaval.

O minueto, um dos momentos mais marcantes da história da Academia do Samba (Foto: Acervo OGlobo)
O grupo
coreografado ficou localizado na última divisão do desfile, dividido entre as
origens da homenageada, a liberdade alcançada após seu casamento e seus
caprichos, de acordo com o pesquisador João Gustavo Melo. Além disso, o desfile
marcou a vida de Isabel Valença. Ela, assim como a homenageada do enredo, tornou-se
conhecida do grande público após aquele carnaval, ao encarná-la de uma maneira
incrivelmente luxuosa. O requinte, aliás, foi característica forte de todo o
desfile, com tema escolhido e assinado pelo talentosíssimo Arlindo Rodrigues,
enquanto Pamplona realizava uma viagem internacional. A homenagem à ex-escrava
que se casou com o responsável pela exploração de diamantes na região do
Arraial do Tijuco, atualmente localizada em Diamantina (MG), garantiu o
primeiro campeonato solo para o Salgueiro e inspirou o filme que seria rodado
anos depois pelo cineasta Cacá Diegues.

Chico Rei – Salgueiro 1964

A chamada
“revolução salgueirense” continua a dar frutos na década de 60 e outra
homenagem é preparada para o carnaval seguinte ao inesquecível Xica da Silva.
Contando a história de outro escravo que subverteu aos padrões de status de sua
época, o Salgueiro apostava em exaltar Chico Rei, figura que até hoje promove
dúvidas acerca de sua veracidade. Entre pessoa e lenda, é a ele atribuída a
responsabilidade pela compra da alforria de diversos escravos da tribo de onde
viera e por introduzir em Minas Gerais o congado, manifestação formada pelo
intercâmbio cultural entre Brasíl e países africanos.





Segundo o historiador Diogo de Vaconselos,
Chico Rei teria sido monarca no Reino do Congo – região hoje composta por países
como Angola e República do Congo – e trazido, junto a seus pares, para a região
de Ouro Preto. Lá também se firmou como rei ao conseguir criar uma rede de
apoio para o pagamento de alforrias aos seus familiares e amigos. O desfile
também foi assinado pelo carnavalesco Arlindo Rodrigues e proporcionou para o
Salgueiro o vice-campeonato daquele ano.

Sinhá Olímpia – Mangueira 1990


“Sou amor,
sou esperança”. É assim que um dos mais belos sambas da Estação Primeira de
Mangueira apresentou uma das figuras mais curiosas retratadas na Marquês de
Sapucaí. Bebendo da fonte das homenagens que a afilhada encarnada e branca
realizou nas décadas anteriores, a verde e rosa contou a história de Olímpia
Angélica de Almeida Cotta
,
a Sinhá Olímpia. A senhora também faz parte do imaginário da cidade de Ouro
Preto e foi considerada por alguns nomes da cultura e da História como a
primeira hippie do país, com vestimentas peculiares, marcadas pelo uso
excessivo de cores e materiais alternativos.


Foto: O Globo.
Sinhá Olímpia gostava de contar histórias, contos e
acontecimentos como se estivesse presenciado épocas em que não estava viva. Por
isso, foi taxada como louca na cidade de Minas Gerais notável pela herança da
arquitetura e arte barrocas, justificando o título “E deu a louca no barroco”.  De acordo com o livro “As Matriarcas da Folia”,
a ideia de fazer um tributo em forma de carnaval para Olímpia era de Fernando
Pinto, falecido em 1987. Um dos carnavalescos da Mangueira de 1990, Ernesto
Nascimento era amigo do tropicalista e realizou o enredo descoberto por
Fernando como uma possibilidade de homenageá-lo. 

Após uma sucessão de problemas envolvendo os carros
alegóricos no decorrer da avenida e, com isso, estourar o tempo máximo de
apresentação, a verde e rosa terminou em oitavo lugar, mas faturou seis prêmios
do Estandarte de Ouro, incluindo o de melhor escola e o de samba-enredo.

Tereza de Benguela – Viradouro 1994


Outro imprescindível
nome para a narrativa visual e temática do carnaval, Joãosinho Trinta assinou
seu primeiro desfile na Viradouro em homenagem a uma forte mulher negra: Tereza
de Benguela. Após uma fase épica na Beija-Flor de Nilópolis, o gênio partiu
para as bandas de Niterói disposto a continuar ousando e acreditando em enredos
fortes e repletos de personalidade.



Tereza foi
ícone do movimento libertário durante a época escravocrata do país, e tomou frente do Quilombo de Quariterê, localizado no Mato Grosso. Lá, ela se demonstrou um
exemplo de liderança, assumindo o papel de coordenação do funcionamento
político, social e administrativo do grupo e resistindo às tentativas de escravidão
pela colônia. 



Ao retratar uma figura que conseguia possuir essa inteligência e
mesclar diferentes povos e culturas com respeito e tolerância, João associou
Tereza e suas características com o que desejava para o cenário contemporâneo da
época – que carregava problemáticas que seguem atuais, como preconceito e
questões da terra. A Viradouro terminou em um honroso terceiro lugar e a luz de
Tereza não apagou.

Bidu Sayão – Beija-Flor 1995


Figura
fundamental da música clássica brasileira, Bidu Sayão foi uma cantora lírica de
enorme sucesso e reconhecimento internacional. Durante mais de uma década,
assumiu o posto de principal soprano do Metropolitan Opera House, casa de uma
das principais companhias de música clássica do mundo. A artista encantou
diversas autoridades estrangeiras; em 1921, aos 17 anos, foi intitulada como a
“rouxinol do Brasil” por Hirohito, que seria cinco anos depois o 124º imperador
do Japão. Ela também foi convidada por Roosevelt, então presidente dos Estados
Unidos, em plena Casa Branca, a se naturalizar como cidadã estadunidense. Bidu
recuou do convite, pois queria ser lembrada como uma artista brasileira.


Autor do enredo, Milton Cunha ao lado de Bidu Sayão (Foto: Autor desconhecido)
Um dos
nomes mais expressivos do carnaval e que tem forte papel de exaltação de
figuras desconhecidas do grande público, Milton Cunha foi o autor do enredo e
do desfile em homenagem à soprano, sendo responsável pela disseminação de Bidu pela
comunidade nilopolitana e a todos atentos ao desfile da azul e branco. À época
do carnaval, um dos compositores do samba-enredo daquele ano afirmou que não
conhecia a homenageada, evidenciando a importância das agremiações como
instrumento de contar histórias distantes da população.

Após longa
estadia nos Estados Unidos, Bidu voltou a seu país especialmente pelo desfile.
Com 90 anos de idade, ao lado do carnavalesco Milton Cunha, cruzou a Sapucaí no
último carro da agremiação, vestida com os trajes típicos da Carmem Miranda. A
Deusa da Passarela terminou em terceiro lugar ao exaltar o canto de cristal.


Agotime – Beija-Flor 2001


A
Beija-Flor também tem dobradinha! Além de Bidu Sayão, a escola já retratou
outros nomes da cultura nacional não tão bem lembrados. Entre eles, Agotime e
sua saga foram a inspiração para o desfile de 2001, que contou a trajetória da
monarca da região de Daomé – onde hoje se encontra o país Benim. O enredo se
baseou em relatos do Pajé Zeneide Lima, e acompanhou toda a história da figura
homenageada, que foi vendida como escrava por seu enteado. Filho do primeiro
casamento de Agonglo, após a morte de seu pai e a escolha do meio-irmão para a
ocupação do trono, Adandozan comercializou a madastra como gesto de revolta,
acusando-a de feitiçaria.

Agotime
chegou na Bahia e, ao entrar em contato com a população de origem Nagô e suas
entidades, os orixás, decidiu continuar seus ritos e cultos voduns com os
demais negro-minas, localizados em outro estado. Prosseguiu como escrava durante dez anos, até
conseguir comprar sua liberdade, instalando-se no Maranhão. Lá, Agotime passou
a se chamar Maria Mineira Naê, por conta de seu vodun denominado Naê e pela
região da Costa da Mina – local em que vários escravos saíram do continente
africano para os países da América. Segundo o fotógrafo e etnógrafo
franco-brasileiro Pierre Verger, a monarca fundou a Casa das Minas, que até hoje é uma das casas mais antigas e tradicionais de tambor, localizada no Centro Histórico de São Luís e tombada pelo IPHAN em 2002.


As pretas-velhas do cortejo nilopolitano (Foto: Wigder Frota)
Como canta
o épico samba da escola, a Beija-Flor passou repleta de energia e vibração na
Sapucaí, em uma memorável abertura com desfilantes pretas-velhas à frente do
primeiro carro alegórico.  Foi o quarto
carnaval desenvolvido por uma comissão, em um modelo que, até então, havia
rendido um campeonato e dois vices. Disseminando a história de Agotime, a
agremiação nilopolitana acabou com o vice-campeonato e um gosto de
amargo em perder o título.

Joaquina Lapinha – Inocentes de Belford Roxo 2014


Fechando nosso levantamento,
novamente Minas Gerais e a música lírica aparecem entre as histórias
desvalorizadas pela História. Desta vez, juntas, sob a figura de Joaquina
Lapinha. Mineira, a cantora e atriz obteve grande destaque entre o final do
século XVIII e início do século XIX, em pleno período colonial do Brasil.
Apresentou-se em Portugal para Dom João VI, possuindo passaporte livre entre os
dois países. Assim, a soprano foi uma das primeiras artistas negras de destaque
internacional, em um cenário de normatização de arbitrariedades raciais e de
gênero. Até hoje restam dúvidas acerca das datas de nascimento e morte de
Joaquina Lapinha, mas não há incertezas quanto à sua importância cultural e
social.

O enredo em exaltação a ela era, inicialmente, uma ideia da Beija-Flor de Nilópolis, que sugeriu à coirmã a
homenagem após preteri-la pelo astro da televisão brasileira, o Boni. A
Inocentes de Belford Roxo, embalada por uma linda melodia de samba, fez um
desfile extremamente agradável e com interessantes soluções estéticas
concebidas pelo carnavalesco Wagner Gonçalves. Embora tenha terminado em um
modesto e subestimado décimo lugar, a agremiação expôs no carnaval uma figura
pouco reconhecida pela sociedade e nos apresentou um essencial triunfo da
América, Joaquina.

É fundamental reforçar os valores artístico e cultural das nossas escolas, que devem ter como uma de suas principais missões exaltar outras perspectivas e narrativas do que entendemos como Brasil. Por meio da sua potência em dialogar com as massas e a população como um todo, torcemos para que as agremiações continuem a apostar no processo de retomada do protagonismo de outras figuras e personalidades da nossa sociedade!

Para complementar o texto, criamos uma playlist com os sambas dos desfiles acima e outros que também se encaixam nessa temática!

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