#SérieMulheres: Heroínas do barracão: a atuação feminina na construção artística do carnaval

 

Texto: Beatriz Freire
Revisão: Luise Campos 
Mês a mês mergulhando em diversos universos particulares que formam as complexas organizações que são as escolas de samba, o Carnavalize decidiu derrubar o protocolo social convencional de evidenciar mulheres apenas em março, quando comemora-se o Dia Internacional da Mulher. Por isso, durante o mês de agosto, às segundas-feiras, nossos leitores acompanharam em nosso site um novo capítulo de uma série pensada para enaltecer, contar histórias, lembrar figuras e propor reflexões acerca do papel feminino no carnaval. Hoje, no quarto texto, nos despedimos desta temporada com uma única mensagem possível: obrigada! 
Líderes, fundadoras, passistas, rainhas, porta-bandeiras, intérpretes, ritmistas… por onde se repousa o olhar, nota-se a presença feminina nos diversos segmentos das agremiações. Nossa viagem de quatro semanas tem como destino final as fábricas momescas que moldam os sonhos à realidade; elas também arregaçam as mangas e dividem-se entre criação, planejamento, execução e coordenação. Nos barracões, estas heroínas fazem do trabalho uma extensão de seus próprios corpos – já que cada nova forma de esculturas, alegorias e fantasias nasce da força braçal delas – e também um compromisso destinado a sacramentar grandes ideias e narrativas.
Marie Louise Nery: o sopro fundamental para o vendaval 

Em 1957, Marie Louise trocou as baixas temperaturas das cidades suíças pelo calor do Rio de Janeiro, onde desembarcou a contemplar golfinhos em plena baía de Guanabara. Ela não encabeça a lista por coincidência: é considerada a primeira mulher a trabalhar ativamente no desenvolvimento de um desfile de escola de samba. De corpo e coração aquecidos pelo clima tropical e pela energia do cortejo que já encantava Marie, a figurinista e cenógrafa recebeu, ao lado do marido, também cenógrafo e aderecista, Dirceu Nery, o convite de Nelson de Andrade, presidente do Salgueiro, para que juntos assinassem o desfile do carnaval de 1959 da agremiação alvirrubra. 
Foto: Rafael Andrade/Folhapress.
Com Nelson no comando do enredo “Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil”, o casal de artistas plásticos ficou responsável pelo planejamento e confecção das fantasias que vestiriam toda a escola; as indumentárias reproduziam gravuras de Jean-Baptiste Debret, principal nome da Missão Artística Francesa e expoente do cotidiano do Brasil colonial, homenageado daquele carnaval. A agremiação optou por não apresentar nenhuma alegoria naquele ano como uma resposta às sucessivas críticas feitas pelo júri que perduraram por cinco carnavais. Sem que existisse propriamente o espaço que conhecemos atualmente por barracão, Marie Louise subia as ladeiras do morro do Salgueiro para trabalhar junto às costureiras e aderecistas da escola. 
Na noite dos desfiles, atrasos e confusões antecederam a passagem do Salgueiro pela Avenida Rio Branco. A escola adentrou a pista como primeira escola daquela noite, subvertendo a ordem original que a designava como quinta agremiação a se apresentar. Em um cortejo que abusou – no melhor sentido da palavra – de bom gosto e teatralização, o requinte e a originalidade estéticas marcaram presença, aliadas a uma narrativa cuidadosamente trabalhada pelo presidente-enredista. Não há como deixar de coroar com louros Marie Louise pela contribuição estética fundamental no desfile vice-campeão que roubou a atenção de um jurado em especial, um tal Fernando Pamplona, e preparou as bases da revolução salgueirense que se reafirmaria no carnaval seguinte.
Um das singelas aulas do desfile salgueirense de 1959. Foto: O Globo.
Mais tarde, Marie seguiu pelas coxias e palcos, prestando serviço a espetáculos, balés e peças de teatro. No carnaval, passou ainda pela Portela e retornou ao Salgueiro, mas encerrou a carreira de lantejoulas e fantasias luxuosas logo após a morte do marido, ao final da década de 1960. Dedicou-se também às salas de aula, quando teve como aluna Rosa Magalhães. Da vida, despediu-se neste maio de 2020, vítima da covid-19, na Suíça, longe do calor do carnaval, eternizada como precursora de nomes femininos e antecessora fundamental de um movimento que mudou os rumos dos desfiles. 
Iemanjá enriqueceu o visual… e fez reluzir o seu brilho feminino
Sobre o já mencionado Pamplona e a já citada revolução salgueirense, convém destacar o grupo tocado pelo artista em seu legado na escola da Tijuca, no qual estavam presentes nomes como Arlindo Rodrigues – o grande parceiro – e Joãosinho Trinta, outro ícone que se revelaria poucos carnavais depois. Porém, em especial, três “pupilas” fizeram arte pelo Salgueiro afora. Maria Augusta, a primeira delas, era aluna da Escola de Belas Artes e junto a Fernando Pamplona trabalhava nas decorações de carnaval do Copacabana Palace. Não tardou para dar expediente pelas bandas do Salgueiro e, em 1969, com o histórico “Bahia de todos os deuses” era componente da frutífera equipe do Professor. Naquele ano, a imagem mais marcante da apresentação foi a imensa alegoria de Iemanjá, repleta de espelhos redondos que reluziram toda a pista à luz do dia. Os caminhos estavam abertos. 
Dois carnavais depois, a mente brilhante da jovem artista propôs a temática a ser contada naquele ano: a escola levaria para o grande público a visita de um rei africano a Pernambuco holandesa de Maurício de Nassau. Não teve quem não pegasse no ganzê e no ganzá; do estalo inicial de Augusta, tudo se materializou e o Salgueiro saiu vitorioso daquele carnaval. 
Maria Augusta posa com a ala que a homenageou no desfile da São Clemente de 2018. Foto: Leonardo Bruno.
Quando a relação entre o pai da revolução e o Torrão Amado amargou, foram ela e o companheiro de equipe, Joãosinho, com quem rivalizaria visual e narrativa em carnavais futuros, os herdeiros diretos do legado do mestre à frente da alvirrubra. Em 1973, faturaram juntos o terceiro lugar com “Eneida, amor e fantasia”. Desde o carnaval anterior, em 1972, Augusta já fazia dupla jornada entre o Salgueiro e a ainda inexpressiva União da Ilha do Governador. Para 1974, após o rompimento com a dupla e a escola que havia lhe recebido há cinco carnavais, Augusta tirou aquele e mais um ano sabático à frente da criação artística do carnaval das escolas de samba. Em 1976, voltou às terras insulanas, desta vez para ficar… e fazer história. 
Em 1977, uma inspiração pessoal de Augusta lançou a tricolor como protagonista de um mundo inverso ao luxo e opulência crescentes no carnaval. Criatividade, cores e simplicidade formavam a tríade triunfal da carnavalesca. “Domingo” seria uma ode à alegria da menina que saía do internato em que estudava para aproveitar o dia e desfrutar da companhia da família; uma exaltação à leveza de um dia de descanso, ao contemplar quase sempre desapressado do nascer e do pôr do sol, às comemorações de reuniões e encontros, dentre outras cenas do cotidiano abarcadas por aquele que para alguns é o primeiro, para outros, o último dia da semana. A União da Ilha não veio apenas escandalosamente simples e bela – elementos que se reforçavam mutuamente – mas também brincou no asfalto, conquistando um terceiro lugar. Era aquele o auge de uma trajetória curta e intensa de enredos abstratos e carnavais brincantes, presentes para os olhos e corpos foliões, marcados por sambas inesquecíveis da discografia da escola. 
A visão geral de “O Amanha” em 1978. Foto: Revista Manchete.
No ano seguinte, lançou mão de todo o seu misticismo ao desfilar com o grandioso “O Amanhã”. Mais uma boa posição – a Ilha terminou como quarta colocada – chegava pelo segundo ano consecutivo para o currículo da escola que, até então, havia faturado o nono lugar como posição máxima. Em 1979, Augusta teve os caminhos interrompidos após um desentendimento com a diretoria da escola. Consagrada pelos históricos carnavais dos anos anteriores, acabara ali a rápida fase meteórica com a mentora de uma identidade que é associada à agremiação até hoje. Nos anos seguintes, a carnavalesca passou pela Paraíso do Tuiuti, Tradição e, como a vida é grandiosa demais para permitir meras coincidências, encerrou a carreira na Beija-Flor, em 1993, substituindo Joãosinho Trinta, o antigo companheiro que também marcou seu nome na agremiação nilopolitana. Maria Augusta, dona de uma mente criativa única e definitiva para a história carnavalesca, transpira ainda um sentimento comum entre todos os amantes da festa: a emoção de sempre ao relembrar seus feitos no carnaval.
Agora, retomemos o fio que nos conduz ao início dessa história para lembrar que mais duas personagens ajudam a escrever nossas próximas páginas.
Lícia Lacerda e Rosa Magalhães comemoram o título de 1982.
Antes de falarmos propriamente da mais longeva – e campeã – herdeira de Pamplona, passemos por mais uma integrante do fecundo grupo. Lícia Lacerda, também discente da Escola de Belas Artes, marcou sua assinatura no carnaval em parcerias com Rosa Magalhães, nossa próxima personagem, ao faturarem juntas o título pelo Império Serrano com o lendário “Bumbum Paticumbum Prugurundum”, em 1982, um “metacarnaval” inspirado em uma ideia de Fernando Pamplona e embalado por suas sucessoras como uma crítica ao grandiosismo que invadia a folia em todos os sentidos. Nos carnavais seguintes, fez passagens rápidas pela Imperatriz Leopoldinense, Estácio de Sá e também pela Tradição, quando foi campeã com a agremiação pelo segundo grupo em 1993 e, em 1994, garantiu uma vaga para a escola dissidente da Portela no desfile das campeãs, com o famoso “Passarinho, passarola, quero ver voar”. No carnaval de 1997, um mês antes dos desfiles, deixou a agremiação, que desfilou com o enredo “Do barril ao Brasil”, sobre a história da cerveja, terminando rebaixada. Longe do ofício de carnavalesca desde então, Lícia relembra até hoje as dores e delícias da parceria com a amiga, Rosa, e da carreira solo. 
De aluna a professora, eis a soberana artista 
Para destrincharmos bem toda a trajetória desta fundamental figura, precisaríamos esmiuçar surpreendentes cinquenta anos em atividade da maior expoente da arte carnavalesca do nosso país. Filha de dois artistas – o pai das letras e a mãe do teatro -, ela já tinha no sangue um rascunho traçado de caminhos que muito provavelmente a conduziriam pelas criações, figuras e formas. “Faça-se assim”, disse a vida. Rosa Magalhães, nem sempre professora – ela também é mais uma artista egressa da EBA -, iniciou a carreira junto às demais companheiras de trabalho nos preparativos dos carnavais salgueirenses de Pamplona. Os passos autônomos, que sinalizavam estar um nível acima da condição de “aprendiz”, vieram na década seguinte, em 1974, pela Beija-Flor, quando foi a responsável pelo carnaval “O Brasil no Ano 2000”, em plena ditadura militar. 
Rosa comemorou a incrível marca de 50 anos dedicados à folia. Foto: Leo Martins/O Globo
O boom como autora de carnavais veio anos depois, quando, no episódio já mencionado, com Lícia Lacerda fez o desfile campeão do Império Serrano, em 1982. Um feito imenso para duas artistas ainda em busca de experiência, que se consagraram campeãs por uma das mais tradicionais agremiações cariocas. As duas carnavalescas (imaginem se tivéssemos uma dupla de carnavalescas no dias de hoje!) trabalhavam de forma tão coesa que a parceria se alongou por mais dois carnavais: Imperatriz (Alô, mamãe), em 1984, e Estácio de Sá (O ti-ti-ti do sapoti) em 1987. Este último foi a passagem definitiva para Rosa se lançar na carreira solo a partir do ano seguinte. Ali, apareceria um dos seus principais traços: a mistura da história oficial com o cotidiano, entre o fato e a suposição, passeando pelo real e o inventado. Pela escola do São Carlos permaneceu por mais dois carnavais, em 1988 (O boi dá bode) e 1989 (Um, dois, feijão com arroz), vestindo as mesmas narrativas de cunho político que escolas como Caprichosos de Pilares e São Clemente levaram para a pista de desfiles após os primeiros anos de redemocratização.
Em 1990, veio um reencontro rápido com o Salgueiro, importante estágio para a carnavalesca que se tornara até ali, em mais dois desfiles: “Sou amigo do rei”, em 1990, e o famoso “Me masso se não passo pela rua do Ouvidor”, em 1991, quando conquistou, respectivamente, o terceiro lugar e o vice-campeonato. Apesar das brigas que levaram ao desligamento de Rosa da alvirrubra, estava provado que o grande cortejo das escolas de samba dispunha de uma artista do mais alto nível, herdeira dos ensinamentos valiosos de um mestre e que, mais importante do que serem exatamente assimilados, foram por ela reinterpretados e manifestados à sua própria forma, expressados como uma marca única no universo das escolas de samba.
Uma artista da grandeza de Rosa merecia um acolhimento à altura, digno de rainha. Digno, na verdade, de uma Imperatriz. Ela já havia feito uma breve passagem pela escola de Ramos, em 1984. Mas foi em 1992 que ela assumiu a escola a convite de Viriato Ferreira, iniciando de fato sua marcante trajetória na agremiação. O artista, já com a saúde debilitada, confiou à Rosa o comando da verde e branca. Nasceu, assim, o casamento mais vitorioso da história do carnaval. Ela protagonizou, ainda que não escancaradamente, o duelo principal entre o seu barroco (que talvez venha da devoção aos santos herdada de sua mãe) e o high-tech de Renato Lage na Mocidade Independente. As verde e brancas, uma de Ramos e outra de Padre Miguel, quase brincaram de revezamento entre títulos e disputas acirradas. De 1993 a 2001, Rosa conquistou cinco campeonatos (1994, 1995 e o tri em 1999, 2000 e 2001), dois vices (1993, ano da sua reestreia, e 1996) e um terceiro lugar (1998). A posição mais baixa foi um seguro sexto lugar, em 1997, uma exceção frente à competitividade – e excelência! – dos carnavais de Rosa.
O desfile de 2000 da Imperatriz Leopoldinense, meiuca de um histórico tricampeonato. Foto: Wigder Frota. 
Maior campeã solo da Era Sambódromo, ela saiu vitoriosa em todas as décadas. Após o tri que marcou a virada do século, não conquistou mais nenhum título, mas se reinventou e não sinalizou qualquer desgaste em sua carreira vitoriosa, independente de canecos e notas do júri. Rosa usou e abusou da sua habilidade para introduzir fábulas às narrativas e, como sempre, abalou a estética de alegorias e fantasias, em materiais e formatos, do barroco ao popular, entre anjos, índios e piratas. Em 2009, chegou ao fim o casamento de dezoito inesquecíveis – e prósperos – carnavais pela Imperatriz Leopoldinense. Para 2010, foi contratada pela Ilha do Governador com a missão de não permitir que a escola fosse rebaixada, já que era recém-chegada ao Grupo Especial. Dito e feito. Em uma viagem pelos contos de “Dom Quixote de La Mancha, o cavaleiro dos sonhos impossíveis” a professora garantiu a permanência da escola que recuperou o orgulho de cruzar novamente a Marquês de Sapucaí pelo grupo principal.
Na última década, foi fazer história lá na escola de Noel. Depois de um carnaval sobre cabelos à sua própria moda, embarcou na ideia de Martinho da Vila para cantar Angola no enredo “Você Semba Lá …. Que Eu Sambo Cá! O Canto Livre de Angola”. O desfile afro, até então inédito na carreira de Rosa, emocionou componentes e arquibancadas. Por um detalhe a Vila Isabel não terminou campeã, mas faturou o vice. No ano seguinte, com a escola mordida pelo gostinho do “quase” campeonato, a carnavalesca conduziu o enredo “A Vila canta o Brasil, celeiro do mundo. Água no feijão que chegou mais um”. A Sapucaí, perto do amanhecer, viu se armar na pista uma verdadeira festa no arraiá; uma emoção em cores, samba e evolução da escola. Na quarta de cinzas, deu azul, branco e… Rosa. A escola saiu vitoriosa e a carnavalesca conquistou mais um título na nova década.
Nos últimos anos, a Mangueira recebeu a professora para um breve carnaval que não rendeu os mesmos frutos que o desfile campeão do ano anterior. Em seguida, a São Clemente se viu possibilitada a sonhar pelos olhos de Rosa, que esteve na escola de 2014 a 2017. Em 2015, uma homenagem da aluna ao mestre Fernando Pamplona arrancou aplausos e fez as lágrimas rolarem durante o desfile da preta e amarela de Botafogo. Apesar de um injusto nono lugar – há quem diga que a escola merecia uma colocação entre as campeãs -, pairou a certeza da maestria da artista. Em 2018 e 2019, sua passagem pela Portela garantiu dois quarto lugares. Em 2020, ano de reencontro com a Estácio de Sá e dos seus cinquenta carnavais em atividade, Rosa teve pela primeira vez o desgosto de um rebaixamento – também injusto. Tudo tem uma primeira vez.
Para o próximo carnaval, ela reencontra a sua parceira mais longeva e frutífera. Rosa, com a experiência que tantos anos de dedicação ao ofício pode trazer, retoma os ares juvenis de quase trinta anos atrás para sentar-se novamente no seu trono de Imperatriz. A contribuição inestimável para o carnaval, dentro e fora da pista, já que ela exportou a festa para grandes eventos europeus, lhe garante a figura de uma artista admirada e ainda muito bem quista por todos. O seu desabrochar nos fez eternos contempladores de sua existência, revestida de beleza modesta e ao mesmo tempo escandalosa que só as flores mais bonitas – as rosas – têm.
As caçadoras de histórias
Mas nem sempre elas estão, necessariamente, investidas nos cargos de carnavalescas. Há, ainda, mulheres que se dedicam à busca pelas histórias a serem narradas. Márcia Lage ocupa um caminho do meio entre esses papéis que até podem se misturar, mas não estão inequivocamente interligados. A cenógrafa viu as escolas de samba cruzarem sua vida de forma mais contundente nos anos 1990, quando era assistente de seu marido, Renato Lage, nos áureos tempos de Mocidade. Os registros só listam Márcia como autora de narrativas e carnavais, efetivamente, a partir de 2002, o último do casal pela escola de Padre Miguel, com “O grande circo místico”. 
O trabalho de Márcia é constantemente associada ao marido ou até invisibilizado. Foto: TV Brasil. 

 

Verdade seja dita, o grande público, os dirigentes e mesmo o júri a puseram à margem seu protagonismo exercido no suado e desgastante dia a dia de trabalho em prol da construção de carnavais. Ela esteve presente no Salgueiro por treze carnavais, seguiu pela Grande Rio e pelo segundo ano defenderá as cores da Portela. Em 2009, assinou um carnaval solo pelo Império Serrano, ano em que a escola reeditou o enredo “A lenda das sereias”, de 1976. Fato é que Márcia, muitas vezes questionada em sua contribuição para ideias e construções e, podemos dizer, de sua posição fundamental dentro do trabalho que carrega a marca Lage, precisa ser mais reconhecida.
Outra peça fundamental no fazer-pensar do que contam as escolas de samba na Avenida está em Nilópolis. Na Beija-Flor, dentro do molde da famosa comissão de carnaval capitaneada por Laíla durante muitos carnavais, Bianca Berhends, chegada à escola em 2002, é a verdadeira narradora nilopolitana. Cientista social por formação, ela está há nada menos do que vinte carnavais imersa nas pesquisas de enredo da escola. Em 2008, foi premiada com o troféu Plumas e Paetês na categoria pesquisadora. Hoje, Bianca está à frente do Departamento Cultural da escola. 


A herdeira
As brilhantes trajetórias que contamos neste texto marcam uma triste realidade: elas ainda são a exceção. Beira o inimaginável crer que mulheres não sonhem em ser carnavalescas. Nos últimos anos, ainda bem, para além de todo o majestoso trabalho desenvolvido por Rosa, Márcia e Bianca, surgiu Annik Salmon, mais uma egressa da Escola de Belas Artes. Na Porto da Pedra, iniciou a carreira em 2003, como assistente do carnavalesco Alexandre Louzada, a quem acompanhou por mais cinco carnavais, até 2008, em passagens pela Vila Isabel, Cubango e Beija-Flor. A assinatura de um trabalho veio exatamente pela verde e branca de Niterói em 2007, quando integrou a comissão de carnaval responsável pelo enredo que homenageou a cidade de Paracambi. 
Poucos anos mais tarde, em 2009, encontrou Paulo Barros e Alex de Souza, quando trabalhou com eles pela Vila Isabel, no ano que a escola rendeu homenagens ao Theatro Municipal do Rio de Janeiro. A partir de então, Paulo Barros a convidou para ser seu “braço direito” no carnaval de 2010 da Unidos da Tijuca, escola para onde o carnavalesco retornara depois de alguns anos. Era impossível prever até o momento em que a escola cruzou a Avenida, mas ela viria a se consagrar campeã com a pontuação máxima. A permanência de toda a equipe esteve, portanto, garantida. Como integrante da agremiação do Borel, Annik participou da conquista de mais dois títulos, em 2012 e 2014. Desfrutou com todo o merecimento do conforto de seguir na escola, já que ela sempre esteve inteirada e participava ativamente de todos os processos de desenvolvimento de cada um desses projetos.
Annik assinou seu primeiro desfile solo em 2020 na Porto da Pedra.
Em 2015, quando Paulo Barros despediu-se da Tijuca, Annik seguiu o próprio caminho e permaneceu na escola para assinar seu primeiro carnaval pelo Grupo Especial como integrante de uma comissão. Logo na “estreia”, chegou a um grato quarto lugar. No ano seguinte, em 2016, o enredo que flertava com o agronegócio e a cidade de Sorriso garantiu o vice-campeonato à agremiação. Por lá, a artista adquiriu mais e mais experiência, sempre coordenando as etapas necessárias para o melhor desfile que a escola pudesse apresentar, e garantiu um décimo primeiro lugar – em virtude do trágico acidente com um carro da escola em 2017 – e dois sétimos lugares. 
Em 2020, alçou novos voos: foi assinar seu primeiro carnaval solo, dessa vez, voltando ao grupo de acesso do carnaval carioca, pela Porto da Pedra. Não podemos deixar de assinalar que sua voz se fez ouvir, nessa estreia, num homenagem às personagens femininas fundamentais para o surgimento do samba: o enredo “O que é que a Baiana tem? Do Bonfim à Sapucaí”, reverenciou as matriarcas que nos deram a todos nós – a todas nós – chão e fundamento para caminhar. E foi assim, revestida de ancestralidade, que Annik conduziu a escola a um honroso terceiro lugar, que lhe rendeu a renovação do contrato com a agremiação. Para o próximo carnaval, ela segue no intuito de dar visibilidade a narrativas de grandes mulheres: desenvolverá o belíssimo enredo “O caçador que traz alegrias”, homenagem à mãe Stella de Oxóssi.
Mãos à obra
Para além de pensar o carnaval artisticamente, também temos uma função que fundamental para que os sonhos e narrativas da folia ganhem vida. E se enganou redondamente quem pensou que o trabalho braçal dos barracões conta apenas com a presença masculina. Elas estão presentes no planejamento, projeção e feitura de alegorias e nada mais justo do que mencionar aqui também algumas das artistas e trabalhadoras que enfrentam a resistência diária às suas presenças causada pelo simples fato de serem mulheres.
A cenógrafa e projetista Penha Lima é um desses exemplos, assim como a escultora Andréa Vieira. As duas tiveram boa parte de suas carreiras dedicadas a acompanhar Rosa Magalhães; Andréa, formada em cenografia pela Escola de Belas Artes, dá formas às esculturas do carnaval há mais de vinte e cinco anos, muitos deles ao lado da professora. Na Inocentes de Belford Roxo, Luana Rios exerce hoje uma função que, infelizmente, não conta com muitas representantes do gênero feminino: é diretora artística de barracão, cargo conquistado após oito anos de suor em diversas agremiações. Ela foi chefe de ateliê de escolas como União do Parque Curicica, Alegria da Zona Sul e Vila Isabel, além de carnavalesca em 2016 pela Arranco do Engenho de Dentro e assistente do carnavalesco Marcus Ferreira no carnaval de 2019, pela Inocentes.
Andréa Vieira posa ao lado de Rosa Magalhães e Mauro Leite com o Emmy conquistado pela equipe. 
E todas as mulheres aqui citadas contam em suas equipes com muitas outras, formando um elo que aqui fazemos questão de visibilizar. Por isso, não podemos deixar de citar as costureiras que se dedicam exaustivamente na confecção de fantasias e às aderecistas que dão forma às decorações das alegorias. Todas elas, certamente, têm seu grau de contribuição para a folia, mostrando na prática o que buscamos dizer nessas quatro semanas com nossos textos da Série Mulheres: elas estão presentes e são capazes de desempenhar qualquer atividade no carnaval. 
Desta forma, finalizando nosso passeio pelos mais diversos espaços que o feminino ocupa dentro das escolas, chegamos ao fim dessa trajetória carregando a documentação de nomes fundamentais de mulheres que criaram e carregam legados, perpetuando a presença feminina dentro das agremiações. Obrigada a todas pela inspiração!
Confira os demais textos da Série Mulheres, que investigam a história das escolas de brasileira pela ótica feminina. O passeio começa pelo seio feminino das ancestrais do samba, segue pelas líderes e fundadoras que fizeram história.  O terceiro capítulo passa pelas Rainhas do canto e da dança: a atuação das mulheres no universo musical, até chegar na Heroínas do barracão: a atuação feminina na construção artística do carnaval

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