Todo dia era dia de índio: grandes sambas sobre os verdadeiros donos da terra

por Leonardo Antan e Beatriz Freire.

Todo ano pipocam enredos afro em suas mais variadas vertentes. Também anualmente o famoso “mito das três raças” é exaltado através da mestiçagem cordial. Branco, negro e índio vivendo em aparante harmonia. Mas muito além do dia 19, é bom lembrar a menos falada das etnias fundadoras do Brasil. Em comparação ao números de enredos afros, os índios são bem menos falados de maneira comparativa. Antes da invasão portuguesa, as civilizações indígenas viviam em milhões por aqui. Muito além do mito do bom selvagem, eram diferentes povos com costumes e hábitos diferentes e modos de organização social bem estruturados. Em louvação a eles, saudando o verdadeiro dono da terra, vem com a gente homenagear os índios brasileiros com grandes sambas e desfiles que exploraram a temática.

O verde do Xingu

O parque do Xingu é uma das mais importantes concentrações de povos indígenas do Brasil atualmente. Se estendendo por todo o norte do país, a diversidade étnica do parque demarcado pelos irmão Villas-Bôas já foi cantada várias vezes pela Sapucaí com diferentes abordagens:

Como era verde meu Xingu – Mocidade 1983

“Deixe nossa mata sempre verde, deixe nosso índio ter seu chão”



⁠⁠⁠O primeiro enredo a abordar diretamente o local foi desenvolvido pelo mais indianista dos carnavalescos. Tropicalista e desbundado, Fernando Pinto foi um dos artistas que mais levantou a bandeira dos povos brasileiros. Foram ao todos três de seus 15 enredos assinados no especial. “Como era Verde meu Xingu” clamava pelo cuidado da natureza antes de “estar em moda falar de ecologia”. A visão trazia o índio vivendo feliz nas matas mas também engajado na luta contra a invasão portuguesa. Com pegada surrealista, a mãe natureza recrutava camaleões guerreiros para lutar contra os colonizadores e desmatadores. Apesar da boa apresentação, garantiu apenas o sexto lugar. Após esse desfile, as peças da escola foram expostas numa galeria de arte em Ipanema, com grande sucesso de público segunda jornais da época. 

Xingu, o pássaro guerreiro – Tradição 1985

Caraíba quer civilizar o índio nu, caraíba quer tomar as terras do Xingu”

⁠⁠⁠Fundada a partir de uma dissidência da Portela, a Tradição foi fundada em 1984 e realizou seu primeiro desfile no ano seguinte na avenida Rio Branco, no grupo 2B. O enredo escolhido foi o mesmo Xingu, cantando em verso e prosa nos versos dos grandes João Nogueira Paulo César Pinheiro. Abordando também a invasão caraíba, mas com pegada mais mitológica, o desfile foi assinado pela grande carnavalesca Maria Augusta. A junção dá beleza dá obra musical com o trabalho estético da artista teria resultado um desfile monumental e imbatível que desbancou as concorrentes com folga. Era o primeiro dos três títulos seguidos da azul e branco até ela chegar ao especial em 1988.

Xingu, o clamor que vem da floresta – Imperatriz 2017

“Sou o filho esquecido do mundo, minha cor é vermelha de dor”



Ainda na temática sobre o importante parque, a Imperatriz Leopoldinense retratou a fauna e a flora além da resistência da cultura indígena da região amazônica, que causou grande polêmica antes da folia. Mostrando rituais, templos sagrados e a ameaça aos índios, a escola de Ramos emocionou o público com o carro que trazia o Raoni, líder dos caiapós é símbolo da luta pela preservação da Amazônia. Em seu desenvolvimento, Cahê Rodrigues apostou em uma linha levemente maniqueista, colocando em extremos o branco como mau e o índio como bom; apesar disso, o desfile foi, esteticamente, bem resolvido e com bons momentos.

O samba entoado por Artur Franco era bonito e rendeu bem mais que o esperado na Avenida, cantando as dores e a perseverança desses povos. Apesar do sétimo lugar, a Imperatriz eternizou um desfile de alto caráter educativo e, sobretudo, conscientizador. O clamor da floresta ecoou na Sapuca.


Uruçumirim, paraíso tupínambá ⁠⁠⁠- Caprichosos 1979

“Campos do céu são a glorificação aos índios guerreiros que defenderam a nação”

⁠⁠⁠Muito antes de ser a escola da irreverência e da crítica, a Caprichosos de Pilares deu aula de história quando estava no grupo 1B, equivalente a Série B hoje. Numa obra composta por um dos maiores compositores da história da escola, Carlinhos de Pilares, a agremiação escolheria um momento pouco abordado do período colonial. A invasão francesa no Rio de Janeiro, vista através do povo tupinambá, que ficou no meio da disputa entre lusitanos e franceses. O episódio que ficou conhecido como Revolta dos Tamoios e teve como líder o cacique Cunhambebe é belamente contado nessa obra. Obra menos conhecida na discografia em geral das escolas, e dessa lista, que merece ser mais divulgada.

Iracema, a virgem dos lábios de mel – Beija Flor 2017


Bem no coração dessa nossa terra, a menina moça e o homem de guerra”

Inspirada no romance de José de Alencar, a Beija-Flor inovou ao levar pra Avenida a história de Iracema no último carnaval. A escola nilopolitana optou pela substituição das alas convencionais por tribos e cenas teatralizadas, em que eram retratados trechos da história da índia que viveu uma grande paixão com o português Martim; no entanto, essa ausência das alas e o descuido com o todas das simples fantasias genéricas sobre os indígenas, gerou a repetição do enredo que parecia ter muitos momentos iguais durante a apresentação da escola.

O samba da Beija-Flor foi sucesso no pré-carnaval e eleito pela crítica especializada como o melhor do ano de 2017. O sucesso da obra narrativa, muito fiel ao livro, aconteceu muito pela roupagem que os compositores conseguiram dar a ele, fazendo uma espécie de “macumba indígena”. Os versos “vou cantar juremê” e “pega no amerê, areté, anama” estavam na ponta da língua do público presente no domingo, e o desfile, apesar do sexto lugar, rendeu belas cenas ao amanhecer.


O Dono da Terra – Unidos da Tijuca 1999

“Hoje a Tijuca canta, sacode e balança esta cidade, viaja no conto do índio”

Depois do rebaixamento no ano de 98, a Unidos da Tijuca escolheu contar na Sapucaí o índio da Terra Brasilis, do período pré-cabralino. A estética de Oswaldo Jardim agradou os jurados e o público, num desfile considerado impecável, de excelente abordagem e embalado por um samba antológico que exaltava a natureza, os mitos e as crenças indígenas.

Oswaldo foi importante nome do carnaval na década de 90 e, apesar de não alcançar resultados muito expressivos nesses anos, tinha um estilo próprio muito marcado pelo uso de espumas e pelas suas fantasias coloridas, facilmente observadas, inclusive, em “O Dono da Terra”. Na quarta de cinzas, muito aclamada, a escola tijucana foi consagrada campeã do grupo A com todas as notas máximas e retornaria ao grupo especial. Marcado na história da agremiação e gravado na mente de quem presenciou, o carnaval tijucano de 99 deu seu recado. 


Tupinicopolis – Mocidade 1987

“Minha cidade, minha vida, minha nação, que faz mais verde meu coração”

⁠⁠⁠O filho da terra Brasilis Fernando Pinto revolucionaria todos os padrões históricos ao dar ao povo nativo brasileiro sua própria cidade em 1987. Em um jogo de contradições deliciosos, índios de patins fariam suas compras ao melhor estilo capitalista em lojas e estabelecimentos batizados com símbolos da cultura tupi-brasileira, como Saci, Iara, Boitatá e etc. O delicioso jogo de relações faria uma crítica ao sistema capitalista patriarcal através do olhar distante que geralmente é tratado a questão indígena, o colocando numa perspectiva atual. Mas também chamaria atenção para a preservação da cultura nativa e a demarcação de suas terras.

O samba-enredo infelizmente não ficaria a altura do trabalho estético do artista e seria acusado de fazer a escola perder o título para a Mangueira. A obra entretanto apesar dos problemas teria uma frase que sintetizaria o enredo de forma genial: “a oca virou tava, a taba virou Metrópole”.  A crítica e o desfile continuam necessários e atuais até hoje, trinta anos depois.

Menções honrosas:

Apesar de pouco abordado no contexto geral dos desfiles, a temática rendeu grandes desfiles. A lista não pretende ser universal mas tratou de um recorte tentando abranger os mais diferentes períodos temporais e diferentes agremiações. Outros grandes sambas sobre os nativos brasileiros, são:

– Todo dia era dia de Índio, (União da Ilha em 1995)
– Raízes (Vila Isabel em 1987)
– Curumim, Chama Cunhatã Que eu Vou Contar (Paraíso do Tuiuti 2015)
– Eu Sou Índio, Eu Também Sou Imortal (Vila Isabel 2000)
– Catarina de Médicis na Corte dos Tupinambôs e Tabajères (Imperatriz 1994)
– O mundo místico dos caruanas nas águas do Patu Anu (Beija-Flor, 1998)

O índio é elemento fundamental para a formação sociocultural do país, inquestionavelmente. Com o papel de ensinar e alertar, é indispensável que as escolas de samba continuem abordando a temática em seus desfiles, mas de uma forma que desconstrua a imagem que a população geral tem dos nossos nativos, como bom-selvagem, escondendo seu instinto que é naturalmente guerreiro. É preciso abordar as mais diferentes etnias e crenças, mostrando a pluralidade desses povos, não os uniformizando. Afinal, antes do chegada portuguesa, “todo dia era dia de índio”.

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